quarta-feira, 1 de outubro de 2025

CONFIANDO EM DEUS EM MEIO ÀS BATALHAS

 

Texto Base: Salmos 27

Introdução

Neste salmo vemos Davi, embora bastante ocupado com os inimigos, ainda preocupado com Deus, e chamando nele toda a sua satisfação. O lugar de todo seu desejo é o tabernáculo do Senhor, onde quer oferecer sacrifícios de júbilo e cantar louvores (Sl 27.6). O Salmo 27 é um cântico de confiança em meio às batalhas da vida. Davi expressa duas realidades que marcam a jornada do crente: os inimigos que cercam e o Deus que sustenta. Entre o medo e a fé, ele escolhe a confiança inabalável no Senhor. Esse salmo nos ensina que quando a alma se apoia em Deus, nenhuma escuridão pode apagar a luz da esperança.

I – O Senhor é a minha luz e a minha salvação (v.1)

Para o Salmista Deus é a luz e a salvação e fortaleza, e isso acaba com o receio. De que temores, de quais vícios e pecados, temos nós provado a salvação de Deus? Assim, destacamos:

1)      Deus é a fonte da vitória contra o medo.

2)      Quem tem o Senhor como luz, nunca tropeça nas trevas do desespero.

3)      O medo se dissipa quando reconhecemos que a nossa segurança está em Deus e não em nós mesmos.

II) Uma coisa pedi ao Senhor (v.4)

1)      A prioridade do crente é a presença de Deus.

2)      Quem busca o rosto de Deus encontra descanso para a alma.

3)      Mais do que vitórias materiais, Davi desejava habitar na presença do Senhor, e essa deve ser também a sede do nosso coração.

III) Espera no Senhor, anima-te! (v.14)

1)     A esperança no Senhor é a força que sustenta o crente.

2)      Esperar em Deus não é perder tempo, é se alinhar ao tempo perfeito do Eterno.

3)      A espera ativa, em oração e fé, fortalece o coração e prepara o caminho para a vitória.

 IV) Personagens bíblicos que confiaram em Deus em meio as batalhas:

1)     Josué – A conquista de Jericó

Josué 6.2 – “Então disse o Senhor a Josué: Olha, tenho dado na tua mão a Jericó, ao seu rei e aos seus homens valorosos.” Josué confiou em Deus seguindo a estratégia divina (rodear a cidade e tocar as trombetas), e a vitória veio de maneira sobrenatural. 

2)      Gideão – A batalha contra os midianitas

Juízes 7.7 – “E disse o Senhor a Gideão: Com estes trezentos homens que lamberam a água vos livrarei, e darei os midianitas na tua mão.”  Mesmo com poucos homens, Gideão confiou que a vitória vinha do Senhor, não da força humana.

 3)      Davi – Contra Golias

1 Samuel 17.45 – “Davi, porém, disse ao filisteu: Tu vens a mim com espada, e com lança, e com escudo; porém eu vou a ti em nome do Senhor dos Exércitos, o Deus dos exércitos de Israel, a quem tens afrontado.” Davi venceu não com armas poderosas, mas confiando totalmente em Deus. 

4)      Josafá – A guerra contra Moabe e Amom

2 Crônicas 20.17 – “Nesta batalha não tereis de pelejar; parai, estai em pé, e vede a salvação do Senhor para convosco, ó Judá e Jerusalém...” Josafá buscou ao Senhor com jejum e oração, e Deus lutou por eles. 

5)     Moisés e Israel – Contra os egípcios no Mar Vermelho

Êxodo 14.13-14 – “Não temais; estai quietos, e vede o livramento do Senhor, que hoje vos fará... O Senhor pelejará por vós, e vós vos calareis.” O povo estava cercado, mas Deus abriu o mar e os fez atravessar em vitória.  

 6)     Daniel – Na cova dos leões

Daniel 6.23 – “Então o rei muito se alegrou em si mesmo, e mandou tirar a Daniel da cova; assim foi tirado Daniel da cova, e nenhum dano se achou nele, porque crera no seu Deus.” Daniel enfrentou a batalha da fé, confiando em Deus mesmo diante da morte.  

7)      Ezequias – Contra Senaqueribe, rei da Assíria

2 Reis 19.35 – “Sucedeu, pois, que naquela mesma noite saiu o anjo do Senhor e feriu no arraial dos assírios cento e oitenta e cinco mil...” O rei Ezequias orou, confiou em Deus, e o Senhor deu a vitória milagrosamente.     

Conclusão

O Salmo 27 nos mostra três pilares da vida cristã: 1) Confiança na proteção de Deus; 2) prioridade pela Sua presença; e 3) esperança em Suas promessas.

Assim como Davi, podemos declarar: “Ainda que um exército me cercasse, o meu coração não temeria”.

 Quem confia no Senhor vence o medo, quem busca o Senhor encontra descanso, e quem espera no Senhor jamais será confundido. 

Nós, como o salmista, precisamos pedir: 1) O favor do Senhor/a minha voz quando clamo (27.7); 2) Á direção/ ensina-me Senhor o teu caminho (27.11); 3) A proteção de Deus/não me entregue à vontade dos meus inimigos (27.12). E assim, como o salmista precisamos olhar a formosura do Senhor, em tempos quando a mídia nos mostra tanto da perversidades dos homens. Contemplar a formosura do Senhor era o desejo de Davi (27.6), e deve ser o desejo de todo servo de Deus. E, tal beleza encontramos na Palavra de Deus.  

                                            Fraternalmente em Cristo.

                                                 Josué de A Soares

sábado, 27 de setembro de 2025

O Reino dos Céus e o Reino de Deus

 


Busquem, pois, em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas serão acrescentadas a vocês. (Mc 6.33).

Por onde forem, preguem esta mensagem: O Reino dos céus está próximo. (Mt 10.7).



Introdução

As expressões “Reino dos Céus” e “Reino de Deus” aparecem com frequência nos Evangelhos, sendo centrais na pregação de Jesus. Embora muitos intérpretes as tratem como sinônimas, a investigação exegética e teológica aponta para nuances que ajudam a compreender a riqueza desse conceito. O presente estudo busca apresentar a origem, definição e implicações bíblico-teológicas dessas expressões, considerando a tradição da Igreja e o impacto pastoral para a vida cristã.

1. Origem e contexto bíblico

O Evangelho de Mateus utiliza quase exclusivamente o termo Reino dos Céus” (cerca de 32 vezes), enquanto Marcos, Lucas e João preferem Reino de Deus”. A diferença pode ser explicada pelo contexto judaico: os judeus do primeiro século, por reverência, evitavam pronunciar o nome divino, utilizando circunlóquios como “céus” em lugar de “Deus”¹. Assim, Mateus, escrevendo principalmente para judeus, adapta sua linguagem sem alterar o conteúdo.

2. Unidade conceitual das expressões

Apesar da distinção terminológica, não há diferença essencial entre “Reino dos Céus” e “Reino de Deus”. Ambas remetem ao governo soberano de Deus e à manifestação de Seu domínio na história. Como observa George Eldon Ladd, o Reino é ao mesmo tempo presente e futuro, um “já e ainda não”². Jesus inaugura o Reino em Seu ministério terreno (Mt 12.28), mas sua plenitude só será revelada na consumação escatológica (Mt 25.34).

3. Sentido teológico do Reino

O conceito de Reino é dinâmico e multifacetado:

  • Presente: já está entre nós, manifestando-se na obra redentora de Cristo (Lc 11.20).
  • Interior: não se reduz a um território, mas é realidade espiritual: “o Reino de Deus está dentro de vós” (Lc 17.21).
  • Escatológico: alcançará plenitude na nova criação (Ap 21.1-4).

Agostinho de Hipona identificou o Reino tanto com a Igreja peregrina no tempo quanto com a Jerusalém Celestial, realidade consumada em Deus³. Já Joachim Jeremias enfatizou o caráter escatológico, sublinhando que o anúncio de Jesus não se refere apenas a um futuro distante, mas à presença atual do Reino na vida dos fiéis⁴.

4. Implicações pastorais

A compreensão do Reino de Deus não é apenas acadêmica, mas prática e devocional. Os discípulos de Cristo são chamados a buscar primeiro o Reino (Mt 6.33), o que significa colocar a vontade de Deus acima dos interesses pessoais. O Reino não é conquistado por mérito humano, mas recebido como dom gratuito (Mc 10.15). Assim, viver sob o Reino é submeter-se ao senhorio de Cristo e refletir Seu caráter no mundo.

Assim, como já mencionado quando lemos “Reino dos Céus” em Mateus e “Reino de Deus” nos outros evangelhos, não devemos imaginar dois reinos diferentes. Trata-se do mesmo Reino: o senhorio de Deus manifestado em Jesus Cristo.

  • O Reino já está presente porque Jesus trouxe a graça, o perdão e a vida nova.
  • Mas o Reino ainda será plenamente revelado quando Cristo voltar e restaurar todas as coisas.
  • Hoje, somos chamados a viver como cidadãos desse Reino, buscando antes de tudo a vontade de Deus e confiando em Sua justiça.

Em outras palavras: o Reino não é apenas “um lugar para onde iremos”, mas uma realidade que já começou dentro de nós e se manifesta quando vivemos em obediência e amor ao Rei, Jesus.

5. O Reino de Deus e o Reino dos Céus na Teologia Pentecostal

No contexto pentecostal, tal tema recebe contornos próprios, marcados pela ênfase no batismo no Espírito Santo, nos dons carismáticos e na esperança escatológica. Este estudo busca analisar como os teólogos pentecostais compreendem a relação entre “Reino dos Céus” e “Reino de Deus”, suas dimensões presentes e futuras, bem como as implicações eclesiológicas e missionárias desta doutrina.

Na perspectiva pentecostal, o Reino de Deus já se manifesta no aqui e agora por meio da presença do Espírito Santo. A descida do Espírito no dia de Pentecostes (At 2.1-4) é compreendida como o início da era do Reino inaugurado por Cristo5

·        Myer Pearlman ensina que o Reino é “a esfera em que a vontade de Deus é reconhecida e obedecida”, sendo a Igreja a sua expressão visível6.

·        Stanley Horton destaca que os dons espirituais, as curas e as manifestações de poder são “sinais concretos de que o Reino chegou”7.

Assim, os pentecostais associam o Reino não apenas a uma realidade espiritual interna, mas também à experiência carismática que confirma a ação viva de Deus entre os fiéis.

Embora o Reino esteja presente, sua plenitude é entendida como futura e escatológica. Os pentecostais esperam a volta iminente de Cristo, evento que consumará o Reino de forma visível e universal (1 Ts 4.16-17).

Antônio Gilberto, um dos principais sistematizadores pentecostais no Brasil, afirma que “o Reino de Deus é o governo de Deus nos corações hoje, manifestado pelo Espírito, e plenamente revelado na vinda gloriosa de Cristo”8.


Essa ênfase escatológica alimenta a espiritualidade pentecostal marcada pela expectativa constante da parousia e pela urgência evangelizadora.

Outro aspecto relevante na teologia pentecostal é a compreensão do Reino em chave ética e missionária. Viver no Reino significa:

·        Praticar a santidade pessoal (Hb 12.14).

·        Ser testemunha de Cristo no poder do Espírito (At 1.8).

·        Participar ativamente da missão de Deus, proclamando o Evangelho em palavras e ações.

Desse modo, o Reino não é apenas uma esperança futura, mas uma realidade que transforma a vida do crente e o envia em missão.

Conclusão

“Reino dos Céus” e “Reino de Deus” são expressões equivalentes, usadas em contextos distintos, mas que apontam para a mesma realidade: o governo soberano de Deus inaugurado em Cristo e consumado na eternidade. A teologia cristã, desde os Pais da Igreja até a pesquisa contemporânea, reconhece que o Reino é presente, interior e escatológico, e a Igreja é chamada a viver essa realidade com esperança, fidelidade e compromisso missionário.

____________________________________________________________________

  1. Ver D. A. Carson, Matthew (Grand Rapids: Zondervan, 1984), p. 102.
  2. George Eldon Ladd, The Gospel of the Kingdom (Grand Rapids: Eerdmans, 1959), p. 19.
  3. Agostinho, A Cidade de Deus, Livro XIX.
  4. Joachim Jeremias, New Testament Theology (New York: Scribner, 1971), p. 98.
  5. Stanley M. Horton, O que a Bíblia diz sobre o Espírito Santo (Rio de Janeiro: CPAD, 1996), p. 127..   
  6. Myer Pearlman, Conhecendo as Doutrinas da Bíblia (Rio de Janeiro: CPAD, 2004), p. 237.

7.  Stanley M. Horton, Teologia Sistemática: Uma Perspectiva Pentecostal (Rio de Janeiro: CPAD, 1996), p. 421.

8.  Antônio Gilberto, Manual da Escola Dominical (Rio de Janeiro: CPAD, 1980), p. 215.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


sexta-feira, 26 de setembro de 2025

A Pericorese: Origem, Definição e Significado Bíblico

 

Introdução

Ao longo da história da teologia cristã, a busca por compreender a relação entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo constituiu um dos maiores desafios do pensamento eclesial. A doutrina da Trindade, embora fundamentada nas Escrituras, exigiu do pensamento patrístico e medieval categorias filosóficas que possibilitassem expressar a unidade divina sem negar a diversidade das Pessoas. Nesse contexto, o termo “pericorese” surge como uma das formulações mais fecundas e belas, pois indica a mútua habitação e interpenetração das Pessoas da Trindade em comunhão eterna.

Longe de ser apenas um conceito técnico, a “pericorese” se apresenta como chave interpretativa não apenas para a teologia trinitária, mas também para a cristologia, a eclesiologia e a espiritualidade. Por meio dela, compreendemos que a vida de Deus é, em sua essência, relação de amor, e que a humanidade é chamada a participar dessa comunhão.

1. Origem do Termo

O vocábulo “pericorese” deriva do grego perichóresis, resultado da junção de peri (“ao redor”) e choréo (“conter”, “fazer espaço”, “dar lugar”, “circular”). Originalmente, o termo foi usado por Máximo, o Confessor (580–662) em contexto cristológico, para descrever a união das duas naturezas de Cristo sem confusão ou divisão¹. Posteriormente, passou a ser aplicado à relação trinitária, especialmente nos escritos de João Damasceno (675–749), que sistematizou o ensino da Igreja Oriental².

No Ocidente, a tradução latina circumincessio ou circuminsessio ganhou força, sobretudo em Tomás de Aquino (1225–1274), que utilizou a expressão para explicar a unidade substancial de Deus e a distinção pessoal entre Pai, Filho e Espírito Santo³.

Essa evolução conceitual mostra que a “pericorese” nasceu de uma necessidade: exprimir o mistério da fé em categorias que preservassem tanto a unicidade quanto a pluralidade do Deus revelado em Jesus Cristo.

2. Definição Teológica

A "pericorese" pode ser definida como a habitação recíproca, permanente e indivisível das Pessoas divinas, de modo que cada uma está plenamente presente nas outras, sem fusão ou confusão. João Damasceno afirma:

“As Pessoas estão unas nas outras, sem confusão e sem fusão, porque permanecem inteiras e distintas, mas inseparáveis em sua essência e energia.”⁴

Essa definição é central para a teologia trinitária, pois evita dois extremos: o triteísmo, que separa as Pessoas de modo a sugerir três deuses, e o modalismo, que as confunde como simples modos de manifestação de uma única realidade.

Assim, a “pericorese” expressa ao mesmo tempo a unidade ontológica de Deus e a relacionalidade pessoal entre Pai, Filho e Espírito Santo.

3. Fundamento Bíblico

Embora o termo não apareça explicitamente na Bíblia, a ideia de “pericorese” está profundamente enraizada nas Escrituras.

3.1. Evangelho de João

No Evangelho de João, encontramos as mais claras alusões:

  • “Eu estou no Pai, e o Pai está em mim” (Jo 14,10-11).
  • “Para que todos sejam um, assim como Tu, ó Pai, estás em mim e eu em Ti, que também eles estejam em nós” (Jo 17,21).

Esses textos revelam uma mútua habitação (enousía) que transcende qualquer lógica humana.

3.2. Cartas Paulinas

O apóstolo Paulo também sugere a presença pericorética ao afirmar: “Nele [Cristo] habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2,9). A ideia de plenitude (plērōma) aplicada a Cristo demonstra que o Filho contém a totalidade de Deus sem deixar de ser distinto do Pai.

3.3. O Espírito Santo

No discurso de despedida (Jo 14–16), Jesus afirma que o Espírito procede do Pai e é enviado pelo Filho (Jo 15,26). Esse dinamismo trinitário indica que o Espírito está inserido nessa comunhão de habitação mútua, não como uma energia impessoal, mas como Pessoa plena.

4. Contribuições Patrísticas

Os Pais da Igreja foram fundamentais na formulação do conceito.

  • Atanásio de Alexandria (296–373), embora não utilize o termo, insistiu na consubstancialidade (homoousios) do Filho com o Pai⁵, preparando terreno para a noção de interpenetração.
  • Agostinho de Hipona (354–430), em sua obra De Trinitate, descreve Deus como *“o amante, o amado e o amor”⁶, antecipando uma compreensão relacional da divindade.
  • João Damasceno desenvolveu de modo mais sistemático a “pericorese”, sendo considerado o pai do termo aplicado à Trindade⁷.

5. Desenvolvimento Teológico Posterior

A tradição ocidental, representada por Tomás de Aquino, articulou a “pericorese” com base na noção de relações subsistentes, destacando que “em Deus tudo é uno, exceto onde há oposição de relação”⁸.

Na teologia contemporânea, Karl Rahner (1904–1984) destacou a inseparabilidade entre a Trindade imanente (quem Deus é em si) e a Trindade econômica (quem Deus se revela na história), afirmando que “a Trindade econômica é a Trindade imanente, e vice-versa”⁹. Já Jürgen Moltmann (1926–2023) ampliou a reflexão, entendendo a pericorese como modelo de comunhão que inspira a vida da Igreja e a organização da sociedade¹⁰.

6. Significado Espiritual e Eclesial

A “pericorese” não é apenas uma doutrina abstrata, mas possui implicações diretas para a espiritualidade e para a vida da Igreja. Se Deus é comunhão pericorética, então a Igreja é chamada a refletir essa comunhão em sua unidade e diversidade.

Assim, a “pericorese” desafia toda forma de individualismo e de hierarquia excludente. Ela aponta para uma espiritualidade relacional, na qual cada pessoa é chamada a viver em abertura, acolhimento e amor, refletindo a vida do Deus Triúno.

Conclusão

A “pericorese”, nascida da reflexão patrística e desenvolvida pela tradição teológica, continua sendo um conceito central para compreender a revelação cristã. Sua origem grega, seu fundamento bíblico e sua elaboração nos Padres da Igreja revelam que Deus não é solidão, mas comunhão perfeita de amor.

Compreender a “pericorese” é, portanto, penetrar não apenas em um conceito, mas no mistério da vida divina. Um mistério que não se fecha em si, mas se abre ao mundo, convidando a humanidade a participar da eterna dança trinitária de amor.

                                              Josué de Asevedo Soares

_________________________________________________________________

  1. Máximo, o Confessor. Ambigua, PG 91, 1056–1418.
  2. João Damasceno. De fide orthodoxa, I, 14.
  3. Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q. 42, a. 5.
  4. João Damasceno. De fide orthodoxa, I, 14.
  5. Atanásio de Alexandria. Contra os arianos, I, 19.
  6. Agostinho de Hipona. De Trinitate, VIII, 10,14.
  7. João Damasceno. De fide orthodoxa, I, 14.
  8. Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q. 28, a. 3.
  9. Rahner, Karl. The Trinity. New York: Crossroad, 1997.
  10. Moltmann, Jürgen. A Trindade e o Reino de Deus. Petrópolis: Vozes, 2000.

 

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

A Revelação Histórica de Deus: Contribuições de Wolfhart Pannenberg e Wayne Grudem

 


Introdução

A revelação de Deus ocupa lugar central na teologia cristã, pois sem a iniciativa divina de se dar a conhecer, a fé não passaria de especulação humana. Mais do que uma transmissão de informações sobre o transcendente, a revelação é entendida como a autocomunicação de Deus na história, pela qual Ele se mostra ao ser humano e oferece salvação.

No pensamento teológico do século XX e XXI, diferentes perspectivas buscam interpretar a natureza e o alcance da revelação histórica de Deus. Entre elas, destacam-se a abordagem de Wolfhart Pannenberg (1928–2014), que sublinha o caráter histórico, público e escatológico da revelação, e a de Wayne Grudem (1948–), que enfatiza a revelação como processo progressivo, registrado de forma autoritativa nas Escrituras e culminando na encarnação de Cristo.

Este escrito tem como objetivo apresentar, de maneira sistemática, o pensamento de ambos os teólogos acerca da revelação histórica de Deus, explorando seus fundamentos, implicações e diferenças, a fim de oferecer uma visão abrangente e crítica sobre o tema.

1. Wolfhart Pannenberg: A Revelação como História Universal

1.1. O caráter público da revelação

Para Pannenberg, a revelação divina não se restringe à esfera subjetiva da fé ou a experiências privadas, mas se dá na própria história universal.¹ Ele recusa a noção de revelação como um ato isolado, acessível apenas pela fé individual, insistindo que a revelação tem caráter público e verificável, podendo ser examinada racionalmente.²

Esse aspecto marca uma ruptura em relação ao modelo de Karl Barth, que via a revelação como um evento miraculoso, não redutível à história. Para Pannenberg, a revelação é histórica, mas não no sentido de que qualquer evento histórico seja revelação: ela é reconhecida como tal no horizonte do futuro escatológico, que confere sentido à totalidade da história.³

1.2. A centralidade da ressurreição

O ponto culminante da revelação histórica de Deus é, para Pannenberg, a ressurreição de Jesus.⁴ Esse evento não é apenas uma experiência interior dos discípulos ou um mito fundador da fé cristã, mas um acontecimento histórico objetivo, com implicações universais. Nele, Deus antecipa o fim da história e manifesta sua verdade de modo definitivo.

A ressurreição é, portanto, o critério hermenêutico da história: é nela que a humanidade pode reconhecer a ação de Deus e antecipar a consumação escatológica. Assim, a revelação histórica não está encerrada em um momento isolado, mas aponta para o futuro como consumação daquilo que já se tornou visível em Cristo.⁵

1.3. Escatologia e universalidade

A revelação, para Pannenberg, só é plenamente compreendida no horizonte do fim da história quando, Deus se manifestará de modo total.⁶ Entretanto, esse futuro já se tornou presente de forma antecipada em Jesus Cristo. Desse modo, a revelação é simultaneamente histórica e escatológica, presente e futura.

Além disso, por ocorrer na história pública e verificável, a revelação tem caráter universal, não se restringindo a um povo ou comunidade de fé. Embora a história de Israel seja fundamental como preparação, o clímax da revelação em Cristo destina-se à humanidade inteira.⁷

2. Wayne Grudem: A Revelação como História Redentora Progressiva

2.1. Revelação geral e especial

Grudem distingue entre revelação geral, a manifestação de Deus na criação, na história e na consciência humana, e revelação especial, pela qual Deus se dá a conhecer de modo particular, ao longo da história da redenção.⁸ É nessa última que se encontra a “revelação histórica de Deus”, pois diz respeito aos atos concretos e progressivos de Deus registrados nas Escrituras.

2.2. Progressividade da revelação

Para Grudem, a revelação divina é progressiva: Deus não comunicou todo o seu plano de uma só vez, mas ao longo da história, em etapas sucessivas.⁹ A criação, a aliança com Abraão, o êxodo, a lei mosaica, os profetas e os escritos sapienciais formam uma linha contínua que culmina na encarnação de Cristo.

Cada etapa acrescenta clareza, mas é apenas em Cristo que a revelação atinge sua plenitude. Essa visão aproxima-se da noção bíblica de que a revelação é um drama histórico, em que cada ato prepara o seguinte.

2.3. A Escritura como registro autorizado

Grudem sublinha que a revelação histórica de Deus está registrada na Escritura, de forma inspirada, inerrante e autoritativa.¹⁰ A Bíblia é, portanto, o meio pelo qual as futuras gerações podem acessar a revelação que ocorreu na história.

Assim, ainda que a revelação tenha se dado em eventos concretos, como a travessia do Mar Vermelho ou a ressurreição de Jesus, ela só é interpretada corretamente à luz da Escritura. Esse ponto distingue Grudem de Pannenberg: para o primeiro, a Escritura é o testemunho normativo e insubstituível da revelação.

2.4. Cristo como plenitude da revelação

Seguindo a tradição evangélica, Grudem afirma que a revelação histórica tem seu ápice em Jesus Cristo.¹¹ Todos os eventos anteriores apontam para ele, e a própria Escritura encontra nele sua chave interpretativa. Assim, Cristo é tanto o conteúdo quanto à forma definitiva da revelação.

3. Convergências e Divergências

3.1. Pontos de convergência

Tanto Pannenberg quanto Grudem reconhecem:

  • A centralidade de Jesus Cristo como plenitude da revelação;
  • O caráter histórico da revelação, que não é mito nem mera especulação;
  • A progressividade da revelação, entendida como processo que culmina em Cristo.

3.2. Pontos de divergência

Contudo, suas diferenças são significativas:

  • Pannenberg vê a revelação como processo histórico e escatológico, verificável publicamente e culminando na ressurreição de Cristo, aberta à investigação racional.
  • Grudem, por outro lado, sublinha a dimensão bíblico-proposicional: a revelação histórica de Deus está registrada de modo autoritativo na Escritura, e sua interpretação deve ser guiada pela fé e pela autoridade da Palavra.

Enquanto Pannenberg abre espaço para o diálogo com a filosofia e a ciência, Grudem adota uma postura mais confessional, enraizada no evangelicalismo12 e na tradição reformada.

Conclusão

A revelação histórica de Deus é uma categoria fundamental da teologia cristã, pois mostra que Deus não é apenas um princípio abstrato, mas um Deus vivo que age concretamente na história para se revelar à humanidade.

A contribuição de Wolfhart Pannenberg destaca o caráter público, racional e escatológico dessa revelação, insistindo que a ressurreição de Jesus é o evento central que antecipa o fim da história. Sua ênfase está em mostrar que a revelação não é privada, mas universal e verificável.

Wayne Grudem oferece uma perspectiva mais confessional e didática, ressaltando a progressividade da revelação ao longo da história da redenção, seu registro autoritativo na Escritura e sua culminância em Cristo como plenitude.

Ambos, ainda que por caminhos distintos, reafirmam que a revelação histórica de Deus é um testemunho de seu amor e fidelidade, chamando a humanidade a reconhecer sua ação no tempo e a responder com fé e obediência.

_____________________________________________________________________

  1. Pannenberg, Wolfhart. Revelation as History. New York: Macmillan, 1968, p. 121-125.
  2. Ibid., p. 135-138.
  3. Pannenberg, Wolfhart. Systematic Theology, vol. 1. Grand Rapids: Eerdmans, 1991, p. 41-47.
  4. Pannenberg, Wolfhart. Jesus – God and Man. Philadelphia: Westminster Press, 1968, p. 104-110.
  5. Ibid., p. 118-124.
  6. Pannenberg, Wolfhart. Basic Questions in Theology, vol. 2. Philadelphia: Fortress Press, 1971, p. 12-18.
  7. Pannenberg, Systematic Theology, vol. 1, p. 52-56.
  8. Grudem, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1999, cap. 6, p. 111-115.
  9. Ibid., cap. 8, p. 127-134.
  10. Ibid., cap. 4-5, p. 55-70.
  11. Ibid., cap. 8, p. 135-139.
  12. O evangelicalismo é um movimento cristão de origem protestante caracterizado pela ênfase na conversão pessoal, na autoridade da Bíblia e na centralidade da fé em Jesus Cristo como experiência transformadora. Embora suas raízes estejam na Reforma Protestante do século XVI, o movimento adquiriu contornos próprios a partir do século XVII e foi amplamente fortalecido pelos avivamentos e despertamentos espirituais ocorridos na Inglaterra e, sobretudo, nos Estados Unidos. (Bebbington, David W. Evangelicalism in Modern Britain: A History from the 1730s to the 1980s. London: Routledge, 1989).