Introdução
Ao longo da história da teologia cristã, a busca
por compreender a relação entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo constituiu um
dos maiores desafios do pensamento eclesial. A doutrina da Trindade, embora
fundamentada nas Escrituras, exigiu do pensamento patrístico e medieval
categorias filosóficas que possibilitassem expressar a unidade divina sem negar
a diversidade das Pessoas. Nesse contexto, o termo “pericorese” surge como uma das formulações mais fecundas e belas,
pois indica a mútua habitação
e interpenetração das Pessoas da Trindade em comunhão eterna.
Longe de ser apenas um conceito técnico, a “pericorese”
se apresenta como chave interpretativa não apenas para a teologia trinitária,
mas também para a cristologia, a eclesiologia e a espiritualidade. Por meio
dela, compreendemos que a vida de Deus é, em sua essência, relação de amor, e
que a humanidade é chamada a participar dessa comunhão.
1. Origem do Termo
O vocábulo “pericorese”
deriva do grego perichóresis, resultado da junção de peri (“ao
redor”) e choréo (“conter”, “fazer espaço”, “dar lugar”, “circular”).
Originalmente, o termo foi usado por Máximo,
o Confessor (580–662) em contexto cristológico, para
descrever a união das duas naturezas de Cristo sem confusão ou divisão¹.
Posteriormente, passou a ser aplicado à relação trinitária, especialmente nos
escritos de João Damasceno
(675–749), que sistematizou o ensino da Igreja Oriental².
No Ocidente, a tradução latina circumincessio
ou circuminsessio ganhou força, sobretudo em Tomás de Aquino
(1225–1274), que utilizou a expressão para explicar a unidade substancial de
Deus e a distinção pessoal entre Pai, Filho e Espírito Santo³.
Essa evolução conceitual mostra que a “pericorese”
nasceu de uma necessidade: exprimir o mistério da fé em categorias que
preservassem tanto a unicidade
quanto a pluralidade do Deus
revelado em Jesus Cristo.
2. Definição Teológica
A "pericorese" pode ser definida como a habitação recíproca, permanente e indivisível
das Pessoas divinas, de modo que cada uma está plenamente presente nas
outras, sem fusão ou confusão. João Damasceno afirma:
“As Pessoas estão unas nas outras, sem confusão e
sem fusão, porque permanecem inteiras e distintas, mas inseparáveis em sua
essência e energia.”⁴
Essa definição é central para a teologia
trinitária, pois evita dois extremos: o triteísmo,
que separa as Pessoas de modo a sugerir três deuses, e o modalismo, que as confunde como
simples modos de manifestação de uma única realidade.
Assim, a “pericorese” expressa ao mesmo tempo a unidade ontológica de Deus e a relacionalidade pessoal entre
Pai, Filho e Espírito Santo.
3. Fundamento Bíblico
Embora o termo não apareça explicitamente na
Bíblia, a ideia de “pericorese” está profundamente enraizada nas Escrituras.
3.1. Evangelho de João
No Evangelho
de João, encontramos as mais claras alusões:
- “Eu
estou no Pai, e o Pai está em mim” (Jo 14,10-11).
- “Para
que todos sejam um, assim como Tu, ó Pai, estás em mim e eu em Ti, que
também eles estejam em nós” (Jo 17,21).
Esses textos revelam uma mútua habitação (enousía) que transcende qualquer lógica
humana.
3.2. Cartas Paulinas
O apóstolo Paulo também sugere a presença
pericorética ao afirmar: “Nele [Cristo] habita corporalmente toda a
plenitude da divindade” (Cl 2,9). A ideia de plenitude (plērōma)
aplicada a Cristo demonstra que o Filho contém a totalidade de Deus sem deixar
de ser distinto do Pai.
3.3. O Espírito Santo
No discurso de despedida (Jo 14–16), Jesus
afirma que o Espírito procede do Pai e é enviado pelo Filho (Jo 15,26). Esse
dinamismo trinitário indica que o Espírito está inserido nessa comunhão de
habitação mútua, não como uma energia impessoal, mas como Pessoa plena.
4. Contribuições Patrísticas
Os Pais da Igreja foram fundamentais na
formulação do conceito.
- Atanásio
de Alexandria
(296–373), embora não utilize o termo, insistiu na consubstancialidade (homoousios)
do Filho com o Pai⁵, preparando terreno para a noção de interpenetração.
- Agostinho
de Hipona
(354–430), em sua obra De Trinitate, descreve Deus como *“o amante,
o amado e o amor”⁶, antecipando uma compreensão relacional da divindade.
- João
Damasceno
desenvolveu de modo mais sistemático a “pericorese”, sendo considerado o
pai do termo aplicado à Trindade⁷.
5. Desenvolvimento Teológico
Posterior
A tradição ocidental, representada por Tomás de
Aquino, articulou a “pericorese” com base na noção de relações subsistentes,
destacando que “em Deus tudo é uno, exceto onde há oposição de relação”⁸.
Na teologia contemporânea, Karl Rahner (1904–1984) destacou a inseparabilidade entre a
Trindade imanente (quem Deus é em si) e a Trindade econômica (quem Deus se
revela na história), afirmando que “a Trindade econômica é a Trindade imanente,
e vice-versa”⁹. Já Jürgen Moltmann
(1926–2023) ampliou a reflexão, entendendo a pericorese como modelo de comunhão
que inspira a vida da Igreja e a organização da sociedade¹⁰.
6. Significado Espiritual e
Eclesial
A “pericorese” não é apenas uma doutrina abstrata,
mas possui implicações diretas para a espiritualidade e para a vida da Igreja.
Se Deus é comunhão pericorética, então a Igreja é chamada a refletir essa
comunhão em sua unidade e diversidade.
Assim, a “pericorese” desafia toda forma de
individualismo e de hierarquia excludente. Ela aponta para uma espiritualidade relacional, na
qual cada pessoa é chamada a viver em abertura, acolhimento e amor, refletindo
a vida do Deus Triúno.
Conclusão
A “pericorese”, nascida da reflexão patrística e
desenvolvida pela tradição teológica, continua sendo um conceito central para
compreender a revelação cristã. Sua origem grega, seu fundamento bíblico e sua
elaboração nos Padres da Igreja revelam que Deus não é solidão, mas comunhão
perfeita de amor.
Compreender a “pericorese” é, portanto, penetrar
não apenas em um conceito, mas no mistério
da vida divina. Um mistério que não se fecha em si,
mas se abre ao mundo, convidando a humanidade a participar da eterna dança
trinitária de amor.
Josué de Asevedo Soares
_________________________________________________________________
- Máximo, o Confessor. Ambigua,
PG 91, 1056–1418.
- João Damasceno. De fide
orthodoxa, I, 14.
- Tomás de Aquino. Suma
Teológica, I, q. 42, a. 5.
- João Damasceno. De fide
orthodoxa, I, 14.
- Atanásio de Alexandria. Contra
os arianos, I, 19.
- Agostinho de Hipona. De
Trinitate, VIII, 10,14.
- João Damasceno. De fide
orthodoxa, I, 14.
- Tomás de Aquino. Suma
Teológica, I, q. 28, a. 3.
- Rahner, Karl. The Trinity.
New York: Crossroad, 1997.
- Moltmann, Jürgen. A
Trindade e o Reino de Deus. Petrópolis: Vozes, 2000.