Introdução
Na narrativa bíblica,
o uso de recursos literários como analepses
e prolepse revela a sofisticação do
autor em articular tempo, memória e expectativa dentro da história da salvação.
Esses mecanismos permitem à narrativa não apenas relatar eventos, mas também
oferecer interpretação teológica,
criar conexão entre passado e futuro, e orientar a compreensão do leitor sobre
o propósito divino1 O Evangelho de Lucas e o Livro de Atos, compostos por um único autor,
apresentam exemplos claros desses recursos, evidenciando tanto a continuidade
literária quanto a coerência teológica da obra.
Analepses: Retrospectiva Narrativa
A analepses, ou flashback, consiste em retornar a eventos anteriores ao ponto narrativo atual,
proporcionando contexto ou esclarecimento. Segundo Gérard Genette, a analepses
permite ao narrador “modular o tempo da narrativa para evidenciar relações de
causa, memória e significado”2
No Evangelho de
Lucas, um exemplo notável ocorre em Lucas 1.5–25, quando o nascimento de João Batista é
narrado em detalhe antes do início do ministério de Jesus. A narrativa retorna
a acontecimentos prévios para fornecer fundamento histórico e teológico
à missão messiânica3 Outro exemplo está em Lucas 24.6–8,
quando os anjos lembram às mulheres das palavras de Jesus, estabelecendo
conexão entre a ressurreição e suas instruções anteriores4
Em Atos, a conversão de Paulo apresenta uma analepses clássica: nos
capítulos 9, 22 e 26, Paulo relata o evento ocorrido anteriormente, detalhando
a intervenção divina em Damasco e legitimando sua autoridade apostólica5 Igualmente, Atos 7, no
discurso de Estêvão, apresenta uma ampla retrospectiva da história de Israel,
utilizando eventos passados para fundamentar uma argumentação teológica.
Prolepse:
Antecipação Narrativa
A prolepse, ou flashforward, consiste em antecipar acontecimentos futuros, preparando o leitor e
criando expectativa. Conforme Robert Alter, a prolepse “funciona como
antecipação interpretativa, oferecendo ao leitor uma perspectiva sobre o
desenlace da narrativa”6
No Evangelho de
Lucas, Jesus frequentemente utiliza prolepse ao anunciar seu sofrimento e
morte: em Lucas 9.22 e Lucas 18.31–33, Ele descreve detalhadamente a paixão
que ainda ocorrerá, preparando os discípulos para compreender os eventos futuros7 Outro exemplo é Lucas 24.49, quando Jesus
promete o Espírito Santo, antecipando o derramamento que será narrado em Atos
2.
Em Atos, Paulo
utiliza prolepse ao prever sua prisão e sofrimento em Jerusalém (At 20.22–24),
reforçando a consciência teológica de que sua missão está subordinada ao plano
divino8 Igualmente, em Atos 27.22–26, o anúncio do anjo sobre a segurança
dos viajantes funciona como antecipação de acontecimentos futuros, combinando
tensão narrativa com confiança teológica.
Função Teológica e
Literária
A combinação de
analepses e prolepse em Lucas–Atos não é apenas técnica literária, mas também ferramenta
teológica. John Nolland observa que tais recursos “permitiram a Lucas articular
a continuidade entre a vida de Jesus e a missão da Igreja, evidenciando o
desígnio divino como unidade narrativa”9 Dessa forma, a analepses reforça a memória histórica e a fidelidade da
tradição, enquanto a prolepse prepara o leitor para a consumação das promessas
divinas.
Além disso, ambos
os recursos contribuem para o engajamento do leitor,
promovendo reflexão e compreensão mais profunda dos eventos, bem como
destacando a intencionalidade da narrativa: mostrar que a história da salvação
segue um plano coerente, onde passado, presente e futuro se articulam de forma
teológica e literária.
Conclusão
O uso de analepses e prolepse em Lucas e Atos
evidencia a habilidade narrativa do autor e a profundidade teológica da obra.
Enquanto a analepses retoma eventos passados para fundamentar o presente e
legitimar a missão apostólica, a prolepse antecipa acontecimentos futuros,
orientando a leitura e revelando a providência divina. Esses recursos permitem
compreender a narrativa bíblica como uma história dinâmica, na qual memória e
expectativa se entrelaçam, reforçando a unidade literária e a coerência
teológica de Lucas e Atos.
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1. GENETTE, Gérard. Narrative
Discourse: An Essay in Method. Ithaca: Cornell University Press, 1980, p.
35.
2.
Ibid., p. 50.
3.
Lc 1.5–25 (NVI).
4.
Lc 24.6–8.
5.
At 9; 22; 26.
6.
ALTER, Robert. The Art of Biblical Narrative. New York:
Basic Books, 1981, p. 72.
7.
Lc 9.22;
18.31–33; 24.49.
8.
At 20.22–24;
27.22–26.
9.
NOLLAND, John. Luke: A Commentary on the Gospel of Luke.
Grand Rapids: Eerdmans, 2012, p. 1210.

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