segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Analepses e Prolepse no Evangelho de Lucas e em Atos: Função Narrativa e Teológica

                          Por: Josué de A soares

Introdução

Na narrativa bíblica, o uso de recursos literários como analepses e prolepse revela a sofisticação do autor em articular tempo, memória e expectativa dentro da história da salvação. Esses mecanismos permitem à narrativa não apenas relatar eventos, mas também oferecer interpretação teológica, criar conexão entre passado e futuro, e orientar a compreensão do leitor sobre o propósito divino1 O Evangelho de Lucas e o Livro de Atos, compostos por um único autor, apresentam exemplos claros desses recursos, evidenciando tanto a continuidade literária quanto a coerência teológica da obra.

Analepses: Retrospectiva Narrativa

A analepses, ou flashback, consiste em retornar a eventos anteriores ao ponto narrativo atual, proporcionando contexto ou esclarecimento. Segundo Gérard Genette, a analepses permite ao narrador “modular o tempo da narrativa para evidenciar relações de causa, memória e significado”2

No Evangelho de Lucas, um exemplo notável ocorre em Lucas 1.5–25, quando o nascimento de João Batista é narrado em detalhe antes do início do ministério de Jesus. A narrativa retorna a acontecimentos prévios para fornecer fundamento histórico e teológico à missão messiânica3 Outro exemplo está em Lucas 24.6–8, quando os anjos lembram às mulheres das palavras de Jesus, estabelecendo conexão entre a ressurreição e suas instruções anteriores4

Em Atos, a conversão de Paulo apresenta uma analepses clássica: nos capítulos 9, 22 e 26, Paulo relata o evento ocorrido anteriormente, detalhando a intervenção divina em Damasco e legitimando sua autoridade apostólica5 Igualmente, Atos 7, no discurso de Estêvão, apresenta uma ampla retrospectiva da história de Israel, utilizando eventos passados para fundamentar uma argumentação teológica.

Prolepse: Antecipação Narrativa

A prolepse, ou flashforward, consiste em antecipar acontecimentos futuros, preparando o leitor e criando expectativa. Conforme Robert Alter, a prolepse “funciona como antecipação interpretativa, oferecendo ao leitor uma perspectiva sobre o desenlace da narrativa”6

No Evangelho de Lucas, Jesus frequentemente utiliza prolepse ao anunciar seu sofrimento e morte: em Lucas 9.22 e Lucas 18.31–33, Ele descreve detalhadamente a paixão que ainda ocorrerá, preparando os discípulos para compreender os eventos futuros7 Outro exemplo é Lucas 24.49, quando Jesus promete o Espírito Santo, antecipando o derramamento que será narrado em Atos 2.

Em Atos, Paulo utiliza prolepse ao prever sua prisão e sofrimento em Jerusalém (At 20.22–24), reforçando a consciência teológica de que sua missão está subordinada ao plano divino8 Igualmente, em Atos 27.22–26, o anúncio do anjo sobre a segurança dos viajantes funciona como antecipação de acontecimentos futuros, combinando tensão narrativa com confiança teológica.

Função Teológica e Literária

A combinação de analepses e prolepse em Lucas–Atos não é apenas técnica literária, mas também ferramenta teológica. John Nolland observa que tais recursos “permitiram a Lucas articular a continuidade entre a vida de Jesus e a missão da Igreja, evidenciando o desígnio divino como unidade narrativa”9 Dessa forma, a analepses reforça a memória histórica e a fidelidade da tradição, enquanto a prolepse prepara o leitor para a consumação das promessas divinas.

Além disso, ambos os recursos contribuem para o engajamento do leitor, promovendo reflexão e compreensão mais profunda dos eventos, bem como destacando a intencionalidade da narrativa: mostrar que a história da salvação segue um plano coerente, onde passado, presente e futuro se articulam de forma teológica e literária.

Conclusão

O uso de analepses e prolepse em Lucas e Atos evidencia a habilidade narrativa do autor e a profundidade teológica da obra. Enquanto a analepses retoma eventos passados para fundamentar o presente e legitimar a missão apostólica, a prolepse antecipa acontecimentos futuros, orientando a leitura e revelando a providência divina. Esses recursos permitem compreender a narrativa bíblica como uma história dinâmica, na qual memória e expectativa se entrelaçam, reforçando a unidade literária e a coerência teológica de Lucas e Atos.

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1.      GENETTE, Gérard. Narrative Discourse: An Essay in Method. Ithaca: Cornell University Press, 1980, p. 35.

2.      Ibid., p. 50.

3.      Lc 1.5–25 (NVI).

4.      Lc 24.6–8.

5.      At 9; 22; 26.

6.      ALTER, Robert. The Art of Biblical Narrative. New York: Basic Books, 1981, p. 72.

7.      Lc 9.22; 18.31–33; 24.49.

8.      At 20.22–24; 27.22–26.

9.      NOLLAND, John. Luke: A Commentary on the Gospel of Luke. Grand Rapids: Eerdmans, 2012, p. 1210.


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