sábado, 1 de novembro de 2025

O Termo grego πλήρωμα (plerōma) no Novo Testamento


Por: Josué de Asevedo Soares     

 Introdução

O vocábulo grego πλήρωμα — transliterado plerōma — deriva do verbo πληρόω (plēroō), “encher”, “preencher”, ou “levar à plenitude”.¹ A forma substantiva oculta, portanto, a ideia de plenitude, completude ou aquilo que preenche/interpreta-se como plenitude.² No contexto neopragmático da língua grega koiné, podia referir-se a algo cheio, completo ou àquilo que completa.³ No Novo Testamento, o uso paulino fundada desse termo assume um peso teológico considerável, especialmente nas cartas aos Colossenses e aos Efésios, onde aparece em frases como «τὸ πλήρωμα τῆς θεότητος» (Col 2.9) ou «τὸ πλήρωμα τοῦ ποιῆσαι πάντα» (Ef 1.10). Neste artigo, exploraremos primeiramente a origem lexical e semântica de plerōma, em seguida a sua aplicação nos textos paulinos, e, por fim, suas implicações teológicas, com menção às vozes de professores de teologia que estudaram o grego e a exegese paulina.

Origem e sentido lexical  

De acordo com os léxicos neotestamentários, plerōma (G4138) significa “repleção ou conclusão; aquilo que preenche (como conteúdo) ou o que é preenchido (como recipiente)” ou simplesmente “plenitude, abundância”.⁴ Thayer define-o: 1) aquilo que foi ou está necessário; 2) aquilo que preenche ou com o qual se preenche; 3) plenitude ou abundância; 4) cumprimento ou observância.⁵ Por exemplo, no uso secular poderia significar o “complemento completo de marinheiros num navio” ou “encher totalmente”.⁶

Em relação ao verbo πληρόω (G4137), o léxico nota “preencher, tornar completo, completar em todos os detalhes, levar a efeito, trazer à realização”.⁷ Assim, plerōma traz o sentido não meramente quantitativo de “muito cheio”, mas qualitativo de “completude que realiza um estado ou objetivo”. 

Esse sentido ajuda a entender por que, no NT, o termo aparece em contextos bastante variados, desde contexto prático (“encheu o navio”) até contextos mais abstratos e teológicos (“plenitude de Deus”, “plenitude dos tempos”), e por que os comentaristas ressaltam que, embora a palavra seja comum, seu uso paulino adquire densidade teológica singular.⁸

O termo no Paulinismo – uso e contexto

Nos escritos de Paulo de Tarso, plerōma ocorre aproximadamente 17 vezes no NT.⁹ Entre as suas ocorrências mais significativas estão: 1)     Colossenses 1.19: «ὅτι ἀρέσκει τῷ θεῷ ἐν αὐτῷ πᾶν τὸ πλήρωμα κατοικῆσαι» (“Porque aprouve a Deus que nele habitasse toda a plenitude”).¹⁰ 2) Colossenses 2.9: «ὅτι ἐν αὐτῷ ἐνοικεῖ πᾶν τὸ πλήρωμα τῆς θεότητος σωματικῶς» (“Porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade”).¹¹ 3)    Efésios 1.22-23: «ὃς ἔδωκεν κεφαλὴν ὑπὲρ πάντα τῇ ἐκκλησίᾳ, ὅ ἐστιν τὸ σῶμα αὐτοῦ, τὸ πλήρωμα τοῦ τὰ πάντα ἐν πᾶσιν πληρουμένου» (“E a pôs por cabeça sobre todas as coisas para a igreja, que é seu corpo, a plenitude daquele que cumpre todas as coisas em todos”).¹² 4)     Efésios 4,13: «μέχρις οὗ πάντες ἀφ’ ἑνὸς γενώμεθα πλήρωμα τοῦ χριστοῦ» (“até todos chegarmos à unidade da fé … à estatura da plenitude de Cristo”).¹³

A partir dessas passagens, o uso paulino de plerōma pode ser analisado sob duas grandes dimensões: (a) a plenitude de Deus em Cristo e (b) a plenitude da comunidade (igreja) ou do tempo escatológico.

Plenitude de Deus em Cristo

 Em Colossenses 1.19 e 2.9, a expressão “toda a plenitude (πᾶν τὸ πλήρωμα)” indica que Cristo não é apenas receptáculo parcial da divindade, mas o veículo pleno da natureza divina. Comentadores como J. B. Lightfoot observam que "Ele não é apenas a principal manifestação da natureza Divina: Ele esgota a divindade manifestada. Nele reside a totalidade dos poderes e atributos Divinos. Para esta totalidade ... os professores gnósticos tinham um termo técnico, o plerōma..."¹⁴ Assim, o termo é usado para confrontar visões, como as de matriz gnóstica, que fragmentavam a concentração em múltiplas complicações ou sarmentos.¹⁵ Por exemplo, o comentarista universitário sobre Colossenses observa que “o termo ‘plenitude’ (plerōma) era um termo gnóstico para os níveis angélicos (aeons)… Paulo rebate que… toda a plenitude da divindade não é espalhada em pequenas doses para um grupo de espíritos, mas habita plenamente somente em Cristo.”¹⁶

 Plenitude da comunidade e do tempo escatológico

A aplicação paulina de plerōma possui múltiplas implicações: cristológicas, escatológicas e eclesiológicas. Em primeiro lugar, cristológica: o uso de plerōma em Colossenses funda uma afirmação robusta da divindade de Cristo e da sua plena humanidade (pois habita “corporally”). Isso tem sido interpretado como uma antítese ao docetismo ou a visões que negavam a plena divindade/humanidade de Cristo.¹⁹ Em segundo lugar, eclesiológica: a igreja é chamada a manifestar essa plenitude em Cristo, e sua missão está ligada à “plenitude de Deus” no mundo. Em terceiro lugar, escatológica: o término dos tempos será o momento da pleroma, a convergência de todas as coisas em Cristo.

Do ponto de vista histórico-teológico, o termo plerōma também era utilizado no contexto gnóstico para descrever uma plêiade de emanações celestiais ou a “plenitude” de divindades.²⁰ Os pais da Igreja e historiógrafos apontam que Paulo reutiliza o termo, porém com um sentido monoteísta e cristocêntrico, em contraste com o dualismo gnóstico.²¹ A obra de Harold A. Merklinger (“The Concept of Pleroma in its Contribution to Pauline Christology”) examina precisamente esse movimento,  como Paul transforma plerōma em categoria cristológica fundamental.²²

Citações de estudiosos:

J. B. Lightfoot: “Para essa totalidade, os mestres gnósticos tinham um termo técnico, o pleroma… Nele reside a totalidade dos poderes e atributos divinos.”²³   Comentador de Colossenses: “o termo ‘plenitude’ (pleroma) era um termo gnóstico… Paulo contrapõe… toda a plenitude da divindade não está dispersa… mas habita plenamente somente em Cristo.”²⁴   Wuest/Alford (sobre Efésios): “a Igreja… é o Seu pleroma… Sua plenitude permanece nela e é exemplificada por ela.”²⁵   Merklinger: analisa como “teologicamente, o conceito de Pleroma de Paulo está entre seus conceitos básicos… nas cartas aos Efésios e aos Colossenses.”²⁶  Essas citações evidenciam que o termo não é apenas técnico, mas está carregado de teologia sistemática e cristológica.

Considerações finais

O termo πλήρωμα (plerōma) situa-se no cerne da cristologia paulina: ele comunica que em Cristo habita a plenitude de Deus (Col 1.19; 2.9), e que a comunidade dos crentes é denominada à manifestação dessa plenitude (Ef 1.23; 4.13). Lexicalmente, o termo traz a carga de “plenitude” ou “completude”, mas sua utilização paulina é carregada de nuance teológica, particularmente em diálogo ou confronto com concepções gnósticas que dispersavam o divino em múltiplas emanações. A implicação é que Cristo não é mera parte de um cosmos divino fragmentado, mas o lugar singular onde a totalidade da divindade se fez presente “em corpo” (σῶμα). Paralelamente, a igreja não é apenas o agregado de fiéis, mas o corpo-plenitude daquele que “enche todas as coisas” (Ef 1.23).

Em síntese: plerōma como termo grego é pleno de potencial lexical; como conceito paulino, é central para a compreensão da revelação, encarnação e missão de Cristo e da igreja. A partir disso, qualquer reflexão cristológica ou eclesiológica que negligencie a “plenitude” com que Deus se revela em Cristo corre o risco de redução da natureza e obra de Cristo.

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¹ Léxico Grego Equip God’s People, “G4138 / plērōma” (2025).
² PaulShandkerchief.com, “Strong’s G4138: plērōma” (2025).
³ Léxico Grego BibleStudyTools.com, verbete “Pleroma”.
⁴ Ibid.
⁵ Léxico Grego de Thayer, verbete “plerōma”.
⁶ Ibid.
⁷ Léxico Grego BibleStudyTools.com, verbete “Pleroo”.
⁸ GotQuestions.org, “O que é o pleroma?”
⁹ BibleTools.org, “Strong’s #4138: pleroma”.
¹⁰ Colossenses 1.19 (NVI).
¹¹ Colossenses 2.9 (NVI).
¹² Efésios 1.22-23 (NVI).
¹³ Efésios 4.13 (NVI).
¹⁴ PreceptAustin.org, “Comentário de Col 1.9-17” (citação de Lightfoot).
¹⁵ História da Igreja Cristã (Philip Schaff), capítulo 12.
¹⁶ PreceptAustin.org “Comentário do capítulo 2 de Colossenses”.
¹⁷ PreceptAustin.org “Comentário de Efésios 1:22-23”.
¹⁸ Allen, “Plenitude em Efésios e Colossenses” (Seminário Teológico Reformado).
¹⁹ FreeBibleCommentary.org sobre Colossenses Capítulo 2.
²⁰ Britannica, “Pleroma – Mitologia Gnóstica”.
²¹ Schaff, idem.
²² Merklinger, Harold A., “O Conceito de Pleroma…” (1964).
²³ idem.
²⁴ idem.
²⁵ idem.
²⁶ idem.
 

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