Introdução
O vocábulo grego πλήρωμα — transliterado plerōma
— deriva do verbo πληρόω (plēroō), “encher”, “preencher”, ou “levar à
plenitude”.¹ A forma substantiva oculta, portanto, a ideia de plenitude,
completude ou aquilo que preenche/interpreta-se como plenitude.²
No contexto neopragmático da língua grega koiné, podia referir-se a algo cheio,
completo ou àquilo que completa.³ No Novo Testamento, o uso paulino fundada
desse termo assume um peso teológico considerável, especialmente nas cartas aos
Colossenses e aos Efésios, onde aparece em frases como «τὸ πλήρωμα τῆς
θεότητος» (Col 2.9) ou «τὸ πλήρωμα τοῦ ποιῆσαι πάντα» (Ef 1.10). Neste artigo,
exploraremos primeiramente a origem lexical e semântica de plerōma, em seguida
a sua aplicação nos textos paulinos, e, por fim, suas implicações teológicas,
com menção às vozes de professores de teologia que estudaram o grego e a
exegese paulina.
Origem e sentido lexical
De acordo com os léxicos neotestamentários, plerōma (G4138) significa “repleção ou conclusão; aquilo que preenche (como conteúdo) ou o que é preenchido (como recipiente)” ou simplesmente “plenitude, abundância”.⁴ Thayer define-o: 1) aquilo que foi ou está necessário; 2) aquilo que preenche ou com o qual se preenche; 3) plenitude ou abundância; 4) cumprimento ou observância.⁵ Por exemplo, no uso secular poderia significar o “complemento completo de marinheiros num navio” ou “encher totalmente”.⁶
Em relação ao verbo πληρόω (G4137), o léxico nota “preencher, tornar completo, completar em todos os detalhes, levar a efeito, trazer à realização”.⁷ Assim, plerōma traz o sentido não meramente quantitativo de “muito cheio”, mas qualitativo de “completude que realiza um estado ou objetivo”.
O termo no
Paulinismo – uso e contexto
Nos escritos de Paulo de Tarso, plerōma ocorre aproximadamente 17 vezes no NT.⁹ Entre as suas ocorrências mais significativas estão: 1) Colossenses 1.19: «ὅτι ἀρέσκει τῷ θεῷ ἐν αὐτῷ πᾶν τὸ πλήρωμα κατοικῆσαι» (“Porque aprouve a Deus que nele habitasse toda a plenitude”).¹⁰ 2) Colossenses 2.9: «ὅτι ἐν αὐτῷ ἐνοικεῖ πᾶν τὸ πλήρωμα τῆς θεότητος σωματικῶς» (“Porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade”).¹¹ 3) Efésios 1.22-23: «ὃς ἔδωκεν κεφαλὴν ὑπὲρ πάντα τῇ ἐκκλησίᾳ, ὅ ἐστιν τὸ σῶμα αὐτοῦ, τὸ πλήρωμα τοῦ τὰ πάντα ἐν πᾶσιν πληρουμένου» (“E a pôs por cabeça sobre todas as coisas para a igreja, que é seu corpo, a plenitude daquele que cumpre todas as coisas em todos”).¹² 4) Efésios 4,13: «μέχρις οὗ πάντες ἀφ’ ἑνὸς γενώμεθα πλήρωμα τοῦ χριστοῦ» (“até todos chegarmos à unidade da fé … à estatura da plenitude de Cristo”).¹³
A partir
dessas passagens, o uso paulino de plerōma pode ser analisado sob duas grandes
dimensões: (a) a plenitude de Deus em Cristo e (b) a plenitude da
comunidade (igreja) ou do tempo escatológico.
Plenitude de Deus em Cristo
Em Colossenses 1.19 e 2.9, a expressão “toda a plenitude (πᾶν τὸ πλήρωμα)” indica que Cristo não é apenas receptáculo parcial da divindade, mas o veículo pleno da natureza divina. Comentadores como J. B. Lightfoot observam que "Ele não é apenas a principal manifestação da natureza Divina: Ele esgota a divindade manifestada. Nele reside a totalidade dos poderes e atributos Divinos. Para esta totalidade ... os professores gnósticos tinham um termo técnico, o plerōma..."¹⁴ Assim, o termo é usado para confrontar visões, como as de matriz gnóstica, que fragmentavam a concentração em múltiplas complicações ou sarmentos.¹⁵ Por exemplo, o comentarista universitário sobre Colossenses observa que “o termo ‘plenitude’ (plerōma) era um termo gnóstico para os níveis angélicos (aeons)… Paulo rebate que… toda a plenitude da divindade não é espalhada em pequenas doses para um grupo de espíritos, mas habita plenamente somente em Cristo.”¹⁶
Plenitude da comunidade e do tempo escatológico
A aplicação paulina de plerōma
possui múltiplas implicações: cristológicas, escatológicas e eclesiológicas. Em
primeiro lugar, cristológica: o uso de plerōma em Colossenses funda uma
afirmação robusta da divindade de Cristo e da sua plena humanidade (pois habita
“corporally”). Isso tem sido interpretado como uma antítese ao docetismo ou a
visões que negavam a plena divindade/humanidade de Cristo.¹⁹ Em segundo lugar, eclesiológica:
a igreja é chamada a manifestar essa plenitude em Cristo, e sua missão está
ligada à “plenitude de Deus” no mundo. Em terceiro lugar, escatológica:
o término dos tempos será o momento da pleroma, a convergência de todas as
coisas em Cristo.
Do ponto de vista histórico-teológico, o termo
plerōma também era utilizado no contexto gnóstico para descrever uma plêiade de
emanações celestiais ou a “plenitude” de divindades.²⁰ Os pais da Igreja e
historiógrafos apontam que Paulo reutiliza o termo, porém com um sentido
monoteísta e cristocêntrico, em contraste com o dualismo gnóstico.²¹ A obra de
Harold A. Merklinger (“The Concept of Pleroma in its Contribution to Pauline
Christology”) examina precisamente esse movimento, como Paul transforma plerōma em categoria
cristológica fundamental.²²
Citações de estudiosos:
J. B. Lightfoot: “Para essa totalidade, os mestres gnósticos tinham um termo técnico, o pleroma… Nele reside a totalidade dos poderes e atributos divinos.”²³ Comentador de Colossenses: “o termo ‘plenitude’ (pleroma) era um termo gnóstico… Paulo contrapõe… toda a plenitude da divindade não está dispersa… mas habita plenamente somente em Cristo.”²⁴ Wuest/Alford (sobre Efésios): “a Igreja… é o Seu pleroma… Sua plenitude permanece nela e é exemplificada por ela.”²⁵ Merklinger: analisa como “teologicamente, o conceito de Pleroma de Paulo está entre seus conceitos básicos… nas cartas aos Efésios e aos Colossenses.”²⁶ Essas citações evidenciam que o termo não é apenas técnico, mas está carregado de teologia sistemática e cristológica.
Considerações
finais
O termo πλήρωμα (plerōma)
situa-se no cerne da cristologia paulina: ele comunica que em Cristo habita a
plenitude de Deus (Col 1.19; 2.9), e que a comunidade dos crentes é denominada
à manifestação dessa plenitude (Ef 1.23; 4.13). Lexicalmente, o termo traz a
carga de “plenitude” ou “completude”, mas sua utilização paulina é carregada de
nuance teológica, particularmente em diálogo ou confronto com concepções
gnósticas que dispersavam o divino em múltiplas emanações. A implicação é que
Cristo não é mera parte de um cosmos divino fragmentado, mas o lugar singular
onde a totalidade da divindade se fez presente “em corpo” (σῶμα).
Paralelamente, a igreja não é apenas o agregado de fiéis, mas o corpo-plenitude
daquele que “enche todas as coisas” (Ef 1.23).
Em síntese: plerōma como termo grego é pleno de
potencial lexical; como conceito paulino, é central para a compreensão da
revelação, encarnação e missão de Cristo e da igreja. A partir disso, qualquer
reflexão cristológica ou eclesiológica que negligencie a “plenitude” com que
Deus se revela em Cristo corre o risco de redução da natureza e obra de Cristo.
___________________________________________________________________
¹ Léxico Grego Equip God’s People, “G4138 / plērōma” (2025).
² PaulShandkerchief.com, “Strong’s G4138: plērōma” (2025).
³ Léxico Grego BibleStudyTools.com, verbete “Pleroma”.
⁴ Ibid.
⁵ Léxico Grego de Thayer, verbete “plerōma”.
⁶ Ibid.
⁷ Léxico Grego BibleStudyTools.com, verbete “Pleroo”.
⁸ GotQuestions.org, “O que é o pleroma?”
⁹ BibleTools.org, “Strong’s #4138: pleroma”.
¹⁰ Colossenses 1.19 (NVI).
¹¹ Colossenses 2.9 (NVI).
¹² Efésios 1.22-23 (NVI).
¹³ Efésios 4.13 (NVI).
¹⁴ PreceptAustin.org, “Comentário de Col 1.9-17” (citação de Lightfoot).
¹⁵ História da Igreja Cristã (Philip Schaff), capítulo 12.
¹⁶ PreceptAustin.org “Comentário do capítulo 2 de Colossenses”.
¹⁷ PreceptAustin.org “Comentário de Efésios 1:22-23”.
¹⁸ Allen, “Plenitude em Efésios e Colossenses” (Seminário Teológico Reformado).
¹⁹ FreeBibleCommentary.org sobre Colossenses Capítulo 2.
²⁰ Britannica, “Pleroma – Mitologia Gnóstica”.
²¹ Schaff, idem.
²² Merklinger, Harold A., “O Conceito de Pleroma…” (1964).
²³ idem.
²⁴ idem.
²⁵ idem.
²⁶ idem.
Benção de Deus.
ResponderExcluirArtigo muito bom.
ResponderExcluirParabéns pelo manuscrito!
ResponderExcluirAprendi bastante!
ResponderExcluirContinue assim, gostei muito da sua pagina!
ResponderExcluirLouvado seja Deus!
ResponderExcluir