sexta-feira, 26 de setembro de 2025

A Pericorese: Origem, Definição e Significado Bíblico

 

Introdução

Ao longo da história da teologia cristã, a busca por compreender a relação entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo constituiu um dos maiores desafios do pensamento eclesial. A doutrina da Trindade, embora fundamentada nas Escrituras, exigiu do pensamento patrístico e medieval categorias filosóficas que possibilitassem expressar a unidade divina sem negar a diversidade das Pessoas. Nesse contexto, o termo “pericorese” surge como uma das formulações mais fecundas e belas, pois indica a mútua habitação e interpenetração das Pessoas da Trindade em comunhão eterna.

Longe de ser apenas um conceito técnico, a “pericorese” se apresenta como chave interpretativa não apenas para a teologia trinitária, mas também para a cristologia, a eclesiologia e a espiritualidade. Por meio dela, compreendemos que a vida de Deus é, em sua essência, relação de amor, e que a humanidade é chamada a participar dessa comunhão.

1. Origem do Termo

O vocábulo “pericorese” deriva do grego perichóresis, resultado da junção de peri (“ao redor”) e choréo (“conter”, “fazer espaço”, “dar lugar”, “circular”). Originalmente, o termo foi usado por Máximo, o Confessor (580–662) em contexto cristológico, para descrever a união das duas naturezas de Cristo sem confusão ou divisão¹. Posteriormente, passou a ser aplicado à relação trinitária, especialmente nos escritos de João Damasceno (675–749), que sistematizou o ensino da Igreja Oriental².

No Ocidente, a tradução latina circumincessio ou circuminsessio ganhou força, sobretudo em Tomás de Aquino (1225–1274), que utilizou a expressão para explicar a unidade substancial de Deus e a distinção pessoal entre Pai, Filho e Espírito Santo³.

Essa evolução conceitual mostra que a “pericorese” nasceu de uma necessidade: exprimir o mistério da fé em categorias que preservassem tanto a unicidade quanto a pluralidade do Deus revelado em Jesus Cristo.

2. Definição Teológica

A "pericorese" pode ser definida como a habitação recíproca, permanente e indivisível das Pessoas divinas, de modo que cada uma está plenamente presente nas outras, sem fusão ou confusão. João Damasceno afirma:

“As Pessoas estão unas nas outras, sem confusão e sem fusão, porque permanecem inteiras e distintas, mas inseparáveis em sua essência e energia.”⁴

Essa definição é central para a teologia trinitária, pois evita dois extremos: o triteísmo, que separa as Pessoas de modo a sugerir três deuses, e o modalismo, que as confunde como simples modos de manifestação de uma única realidade.

Assim, a “pericorese” expressa ao mesmo tempo a unidade ontológica de Deus e a relacionalidade pessoal entre Pai, Filho e Espírito Santo.

3. Fundamento Bíblico

Embora o termo não apareça explicitamente na Bíblia, a ideia de “pericorese” está profundamente enraizada nas Escrituras.

3.1. Evangelho de João

No Evangelho de João, encontramos as mais claras alusões:

  • “Eu estou no Pai, e o Pai está em mim” (Jo 14,10-11).
  • “Para que todos sejam um, assim como Tu, ó Pai, estás em mim e eu em Ti, que também eles estejam em nós” (Jo 17,21).

Esses textos revelam uma mútua habitação (enousía) que transcende qualquer lógica humana.

3.2. Cartas Paulinas

O apóstolo Paulo também sugere a presença pericorética ao afirmar: “Nele [Cristo] habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2,9). A ideia de plenitude (plērōma) aplicada a Cristo demonstra que o Filho contém a totalidade de Deus sem deixar de ser distinto do Pai.

3.3. O Espírito Santo

No discurso de despedida (Jo 14–16), Jesus afirma que o Espírito procede do Pai e é enviado pelo Filho (Jo 15,26). Esse dinamismo trinitário indica que o Espírito está inserido nessa comunhão de habitação mútua, não como uma energia impessoal, mas como Pessoa plena.

4. Contribuições Patrísticas

Os Pais da Igreja foram fundamentais na formulação do conceito.

  • Atanásio de Alexandria (296–373), embora não utilize o termo, insistiu na consubstancialidade (homoousios) do Filho com o Pai⁵, preparando terreno para a noção de interpenetração.
  • Agostinho de Hipona (354–430), em sua obra De Trinitate, descreve Deus como *“o amante, o amado e o amor”⁶, antecipando uma compreensão relacional da divindade.
  • João Damasceno desenvolveu de modo mais sistemático a “pericorese”, sendo considerado o pai do termo aplicado à Trindade⁷.

5. Desenvolvimento Teológico Posterior

A tradição ocidental, representada por Tomás de Aquino, articulou a “pericorese” com base na noção de relações subsistentes, destacando que “em Deus tudo é uno, exceto onde há oposição de relação”⁸.

Na teologia contemporânea, Karl Rahner (1904–1984) destacou a inseparabilidade entre a Trindade imanente (quem Deus é em si) e a Trindade econômica (quem Deus se revela na história), afirmando que “a Trindade econômica é a Trindade imanente, e vice-versa”⁹. Já Jürgen Moltmann (1926–2023) ampliou a reflexão, entendendo a pericorese como modelo de comunhão que inspira a vida da Igreja e a organização da sociedade¹⁰.

6. Significado Espiritual e Eclesial

A “pericorese” não é apenas uma doutrina abstrata, mas possui implicações diretas para a espiritualidade e para a vida da Igreja. Se Deus é comunhão pericorética, então a Igreja é chamada a refletir essa comunhão em sua unidade e diversidade.

Assim, a “pericorese” desafia toda forma de individualismo e de hierarquia excludente. Ela aponta para uma espiritualidade relacional, na qual cada pessoa é chamada a viver em abertura, acolhimento e amor, refletindo a vida do Deus Triúno.

Conclusão

A “pericorese”, nascida da reflexão patrística e desenvolvida pela tradição teológica, continua sendo um conceito central para compreender a revelação cristã. Sua origem grega, seu fundamento bíblico e sua elaboração nos Padres da Igreja revelam que Deus não é solidão, mas comunhão perfeita de amor.

Compreender a “pericorese” é, portanto, penetrar não apenas em um conceito, mas no mistério da vida divina. Um mistério que não se fecha em si, mas se abre ao mundo, convidando a humanidade a participar da eterna dança trinitária de amor.

                                              Josué de Asevedo Soares

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  1. Máximo, o Confessor. Ambigua, PG 91, 1056–1418.
  2. João Damasceno. De fide orthodoxa, I, 14.
  3. Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q. 42, a. 5.
  4. João Damasceno. De fide orthodoxa, I, 14.
  5. Atanásio de Alexandria. Contra os arianos, I, 19.
  6. Agostinho de Hipona. De Trinitate, VIII, 10,14.
  7. João Damasceno. De fide orthodoxa, I, 14.
  8. Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q. 28, a. 3.
  9. Rahner, Karl. The Trinity. New York: Crossroad, 1997.
  10. Moltmann, Jürgen. A Trindade e o Reino de Deus. Petrópolis: Vozes, 2000.

 

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