quarta-feira, 3 de setembro de 2025

O início das Escolas Bíblicas nas Assembleias de Deus no Brasil: gênese, consolidação e legado pedagógico

 


 Introdução

A Escola Bíblica Dominical (EBD) tornou-se, no pentecostalismo assembleiano brasileiro, a espinha dorsal do discipulado, da formação teológica básica e da socialização da fé. Embora a EBD seja um fenômeno protestante anterior ao próprio pentecostalismo (remontando a experiências britânicas e norte-americanas do século XVIII e XIX), sua implantação e difusão no Brasil acompanharam, de modo singular, o desenvolvimento das Assembleias de Deus (AD), fundadas em Belém do Pará em 1911. A EBD funcionou como “currículo comum” para novas conversões e como mecanismo de coesão doutrinária, especialmente em um movimento em rápida expansão geográfica e social.1

Antecedentes: da EBD no Brasil ao ambiente que acolheu a AD

No Brasil, experiências de escola dominical já existiam antes de 1911. A literatura especializada registra iniciativas metodistas ainda em 1836 no Rio de Janeiro, e, sobretudo, a ação do casal escocês Robert Reid Kalley e Sarah Poulton Kalley, que, em Petrópolis (RJ), organizaram aulas bíblicas dominicais com crianças a partir de 19 de agosto de 1855.2 Essas experiências criaram um ethos de educação religiosa dominical que, mais tarde, seria apropriado e reconfigurado pelo pentecostalismo nascente.3

A gênese da Assembleia de Deus (1911–c.1930): Belém do Pará e a primeira Escola Dominical

Dois meses após a organização da Assembleia de Deus em Belém (junho de 1911), registra-se a realização da primeira aula de Escola Dominical assembleiana, em agosto de 1911, na casa do irmão José Batista Carvalho, na Avenida São Jerônimo. A estrutura, já então segmentada por faixas e sexo (homens, senhoras, meninos e meninas), revela a importação de um modelo pedagógico protestante para a realidade amazônica. Entre os primeiros docentes constam Samuel Nyström e Lina Nyström, além de outros colaboradores locais (Capitolina Soares, Antônio Mendes Garcia, Manoel Maria Rodrigues, Amélia Anglada, Plácido Aristóteles, presb. José Plácido da Costa, entre outros).4 Esse dado é precioso por evidenciar que, desde o nascedouro assembleiano, a EBD não foi um adendo opcional, mas parte da estratégia missionária e catequética do novo movimento.5

Consolidação institucional (c.1930–1960): CGADB, CPAD e um “currículo comum”

A década de 1930 marca a crescente institucionalização do trabalho assembleiano em escala nacional (com a Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil – CGADB) e o esforço para padronizar conteúdos de ensino bíblico. Nesse processo, a criação e o fortalecimento da Casa Publicadora das Assembleias de Deus (CPAD) foram decisivos. As atas convencionais já registravam, em 1936, o “sonho” de uma casa publicadora própria; a organização jurídica das atividades ocorreu em 13 de março de 1940, no Rio de Janeiro.6 Desde então, a CPAD tornou-se a principal provedora de material didático para a EBD, com revistas trimestrais (Lições Bíblicas) para diferentes faixas etárias, o que permitiu homogeneidade doutrinária e continuidade pedagógica mesmo em igrejas distantes.7 O esforço editorial foi precedido pelo jornalismo denominacional (por exemplo, o jornal Boa Semente, de 1919), que já articulava ensino e formação espiritual antes mesmo da consolidação editorial posterior.8

 Da EBD à formação de obreiros: institutos bíblicos e EBOs

A expansão do movimento exigiu, paralelamente à catequese dominical, a formação sistemática de obreiros e professores. Nesse ambiente, surgiram os institutos bíblicos assembleianos. Um marco é o Instituto Bíblico das Assembleias de Deus (IBAD), fundado em 1958, em Pindamonhangaba (SP), que se notabilizou pela preparação de missionários, evangelistas e educadores cristãos.9 Além dos institutos, desenvolveram-se as chamadas Escolas Bíblicas de Obreiros (EBOs), encontros intensivos regionais que, ancorados em currículos doutrinários e pastorais, retroalimentavam a EBD local com melhor preparo docente e atualizado.10

O currículo das Assembleia de Deus: revistas, classes e método

O “coração” pedagógico da EBD assembleiana está nas revistas trimestrais, que combinam comentário bíblico, objetivos de aprendizagem, aplicações devocionais e indicações metodológicas ao professor. Ao longo das décadas, a CPAD ofereceu séries para Adultos, Jovens, Adolescentes, Juniores, Primários e Crianças, entre outras, fortalecendo a cultura do ensino sequencial e cumulativo.11 A presença de comentaristas nacionais, muitos deles pastores e docentes assembleianos, consolidou uma hermenêutica pentecostal com identidade própria, ao mesmo tempo bíblica, devocional e missional. Na prática, a EBD tornou-se a “sala de aula” dominical onde a membresia se alfabetiza biblicamente e aprende a viver a fé no cotidiano.12

Mestres, doutrinadores e articuladores do ensino na Assembleia de Deus

A história das escolas bíblicas nas AD é inseparável de seus mestres. Entre os mais influentes, destacam-se:

 1.      Karl-Erik Samuel Nyström (1891-1960) Pastor da AD em Belém (PA) e em São Cristóvão (RJ). Karl-Erik Samuel Nyström nasceu em 9 de outubro de 1891, na Suécia. Em fevereiro de 1913 foi batizado nas águas, na Igreja Filadélfia de Estocolmo, pelo pastor Lewi Pethrus e, no mesmo ano, foi batizado com o Espírito Santo.

2.    2. N. Lawrence Olson foi um missionário pentecostal americano pioneiro nas Assembleias de Deus no Brasil, conhecido por seu evangelismo radiofônico, tendo iniciado o programa "Voz das Assembleias de Deus" em 1955 e fundado o Instituto Bíblico Pentecostal (IBP). Serviu no Brasil de 1938 a 1989, contribuindo para a teologia, a literatura religiosa e o crescimento do movimento pentecostal no país.

3.      Nels Julius Nelson, missionário sueco, homem de Deus. Seu ministério foi decisivo para a propagação da fé pentecostal no Brasil. A partir de 1921, foram 42 anos de trabalhos missionários ininterruptos no norte, nordeste e sul do país.

4.      Otton Nelson, Missionário sueco, evangelista, pastor, antigo líder da Assembleia de Deus em Alagoas, Bahia e Rio de Janeiro, e ex-presidente da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil. 

5.      Antônio Gilberto (1929–2018), pedagogo da EBD, autor do Manual do Professor de Escola Dominical e de obras de teologia pastoral e educacional. Seu legado está em traduzir princípios didáticos para a sala de aula local, formando gerações de professores. 13

6.      Eurico Bergstén (1917–1999), teólogo sueco-brasileiro, autor de Teologia Sistemática (CPAD), referencial para classes avançadas e para a formação de obreiros, oferecendo um arcabouço doutrinário clássico em chave pentecostal.14

       7.      Claudionor de Andrade, prolífico comentarista de Lições Bíblicas e autor de textos catequéticos e de história da doutrina, responsável por consolidar conteúdos em linguagem acessível.15

8.      Elinaldo Renovato de Lima, economista e pastor, comentarista de Lições Bíblicas na área de ética cristã, mordomia e vida devocional, ligando Bíblia e contemporaneidade.16

9.      Esequias Soares, hebraísta e biblista, comentarista de Lições Bíblicas e autor de obras exegéticas, elevando o rigor bíblico nas aulas da EBD.17

10.        José Gonçalves, pastor e escritor, comentarista e autor de obras sobre teologia prática e apologética, contribuindo para o engajamento cultural da membresia.18

11.   Raimundo Ferreira de Oliveira, autor assembleiano citado em manuais e compêndios doutrinários da CPAD, com ênfase na sistematização teológica e na espiritualidade pentecostal.19

12.   Emílio Conde (1901–1990), jornalista, editor e historiador da AD, cuja obra histórica documenta fontes e memórias do movimento, servindo de subsídio para as aulas de história da igreja pentecostal no Brasil.20

13.   Isael de Araújo, historiador e organizador do Dicionário do Movimento Pentecostal (CPAD), fundamental para o professor que deseja contextualizar temas e personagens no currículo da EBD.21

 Funções da EBD no ecossistema das Assembleia de Deus

Do ponto de vista eclesiológico, a EBD cumpre ao menos quatro funções: (a) catequética, introduzindo novos convertidos ao conteúdo essencial da fé; (b) hermenêutica, desenvolvendo uma leitura bíblica pneumatológica e missionária; (c) comunitária, criando laços intergeracionais na igreja local; e (d) formativa, alimentando vocações ministeriais que seguem aos institutos e às EBOs. A literatura mostra que, por meio da CPAD e de sua rede de comentaristas, as AD conseguiram manter um “núcleo duro” doutrinário distribuído nacionalmente, assegurando unidade teológica em meio à diversidade regional.23

 Conclusão

A origem e o desenvolvimento das escolas bíblicas nas Assembleias de Deus no Brasil resultam da convergência entre um modelo pedagógico protestante pré-existente no país e a vocação missionária pentecostal inaugurada em Belém (1911). Desde a primeira classe dominical assembleiana (agosto de 1911), passando pela institucionalização editorial (1936–1940) e pela criação de centros formais de formação (como o IBAD em 1958), a EBD tornou-se a “universidade do crente comum”, mantendo a identidade bíblico-pentecostal e capacitando a membresia para o serviço cristão.24

 Por Josué de A Soares.

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1.      Sobre a EBD como instrumento histórico de discipulado e educação religiosa no protestantismo brasileiro, ver Mendonça, A. G., Protestantismo e Cultura Brasileira (2002); e Reily, D., História Documental do Protestantismo no Brasil (2003). Ver também síntese em “Escola Bíblica Dominical no Brasil: origem, expansão e legado”, Convenção Batista Brasileira.

2.      A experiência metodista de 1836 (Rev. Justin Spaulding) e a experiência dos Kalley (19/08/1855, Petrópolis) são discutidas em: Alderi Souza de Matos, “A EBD e a evangelização” (artigo histórico); e registros da Igreja Evangélica em Petrópolis sobre a chegada dos Kalley.

3.      Sobre a trajetória dos Kalley no Brasil e a implantação da EBD, cf. Seminário JMC, “A origem da Escola Dominical no Brasil – Parte 2” (2023).

4.      Primeira EBD assembleiana (agosto/1911, Belém/PA): “História”, portal escoladominical.com.br (com lista de primeiras classes e professores).

5.      A centralidade da EBD no nascente movimento assembleiano está documentada também em memórias locais e registros denominacionais.

6.      CPAD: atas da CGADB (1936) mencionam o projeto; organização jurídica em 13/03/1940 (Rio de Janeiro). Cf. página institucional da CPAD e verbete enciclopédico.

7.      Sobre a função das Lições Bíblicas como instrumento de coesão doutrinária e padronização curricular, ver materiais institucionais da CPAD e catálogos editoriais.

8.      Jornal Boa Semente (1919) como precursor do esforço editorial assembleiano: ver Emílio Conde, História das Assembleias de Deus no Brasil (documento digitalizado).

9.      IBAD (1958, Pindamonhangaba/SP): fontes denominacionais e memorial institucional do ministério local registram sua fundação e propósito missionário.

10.   As EBOs (Escolas Bíblicas de Obreiros) são práticas consagradas nos campos estaduais e regionais, com ementas doutrinárias e pastorais que retroalimentam a EBD local.

11.   Estrutura etária e séries: ver catálogos e páginas informativas da CPAD e portais de EBD que reúnem links para as revistas trimestrais.

12.   A EBD, ao articular objetivos cognitivos, afetivos e práticos, se tornou sala de aula da membresia assembleiana – uma síntese didático-devocional.

13.   Antônio Gilberto, Manual do Professor de Escola Dominical; comentários em Lições Bíblicas (CPAD).

14.   Eurico Bergstén, Teologia Sistemática (CPAD).

15.   Claudionor de Andrade, diversas obras e comentários de Lições Bíblicas (CPAD).

16.   Elinaldo Renovato de Lima, comentários de Lições Bíblicas e livros de mordomia/ética (CPAD).

17.   Esequias Soares, obras exegéticas (hebraico/AT) e comentários em Lições Bíblicas (CPAD).

18.   José Gonçalves, títulos em teologia prática/apologética e comentários (CPAD).

19.   Raimundo F. de Oliveira, compêndios doutrinários (CPAD).

20.   Emílio Conde, História das Assembleias de Deus no Brasil (CPAD), referência historiográfica básica.

21.   Isael de Araújo, Dicionário do Movimento Pentecostal (CPAD).

22.   Myer Pearlman, Conhecendo as Doutrinas da Bíblia (edições CPAD), influência curricular em EBDs e institutos bíblicos.

23.   Síntese do papel da CPAD e das Lições Bíblicas na coesão doutrinária: ver materiais institucionais e estudos históricos já citados.

24.   Linha do tempo: primeira EBD assembleiana (1911); planejamento editorial (1936) e organização jurídica da CPAD (1940); consolidação de institutos (IBAD, 1958).

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