Por. Josué de A Soares.
Introdução
O processo que levou Jesus à crucificação ocupa lugar
central nos Evangelhos, possuindo grande relevância tanto histórica quanto
teológica. Dentre os escritos neotestamentários, o Evangelho de João se
diferencia ao apresentar informações próprias que aprofundam a análise dos
eventos que precedem a morte de Cristo. Em João 18.13–24, o autor relata que
Jesus foi conduzido inicialmente a Anás, onde ocorre um interrogatório
preliminar, sendo posteriormente enviado, ainda amarrado, a Caifás, que exercia
oficialmente o sumo sacerdócio.
A presença de duas autoridades sacerdotais no
relato suscita importantes questões para o estudo bíblico-teológico: qual a
razão de Jesus ser levado primeiro a Anás? Em que consistia a distinção entre a
autoridade exercida por Anás e aquela atribuída a Caifás? Qual o propósito teológico
dessa sequência narrativa? Tais indagações ultrapassam o campo meramente
histórico e revelam a crítica do evangelista ao sistema religioso judaico
vigente no primeiro século.
O presente artigo propõe-se a examinar João
18.13–24 sob uma perspectiva exegética, histórica e teológica, sustentando que
o evangelista descreve de forma intencional dois momentos distintos no
julgamento de Jesus. Além disso, busca-se demonstrar que esse episódio
evidencia a crise e a falência do sacerdócio humano, ao mesmo tempo em que
prepara o leitor para a compreensão de Cristo como o verdadeiro e eterno Sumo
Sacerdote.
Anás e Caifás no relato bíblico
Conforme João 18.13, após sua prisão no Getsêmani,
Jesus foi levado primeiramente a Anás, sogro de Caifás, que era o sumo
sacerdote naquele ano. Essa informação é fundamental para a correta leitura do
texto, pois indica que Anás não ocupava oficialmente o cargo, mas ainda exercia
grande influência sobre o sacerdócio e sobre o Sinédrio.
Anás havia exercido o sumo sacerdócio entre os anos
6 e 15 d.C., nomeado pelas autoridades romanas. Mesmo após sua deposição, sua
família continuou controlando o cargo, visto que cinco de seus filhos e seu
genro Caifás ocuparam a função em momentos distintos. Esse domínio familiar
transformou o sumo sacerdócio em uma instituição politizada e distante de sua
finalidade bíblica original.
Durante esse primeiro interrogatório, Anás
questiona Jesus acerca de seus discípulos e de sua doutrina (Jo 18.19). A
resposta de Jesus é marcada pela clareza e pela transparência: Ele afirma que
sempre ensinou publicamente, nas sinagogas e no templo, e que nada fez em
segredo (Jo 18.20–21). Tal resposta não apenas demonstra a inocência de Jesus,
mas também expõe a irregularidade do procedimento adotado.
João 18.24 afirma explicitamente que, após esse
interrogatório inicial, Jesus foi enviado amarrado a Caifás, o sumo sacerdote
oficial. Esse detalhe confirma que Anás realizou uma investigação informal,
enquanto Caifás conduziria o julgamento formal diante do Sinédrio.
Conforme João 18.13, Jesus foi levado primeiramente
a Anás, sogro de Caifás, que era o sumo sacerdote naquele ano. Anás havia
exercido o sumo sacerdócio entre os anos 6 e 15 d.C., mas, mesmo após ser
deposto pelas autoridades romanas, manteve grande influência sobre o sacerdócio
judaico. Por essa razão, continuava sendo reconhecido como autoridade
religiosa.
Durante esse primeiro interrogatório, Anás
questiona Jesus acerca de seus discípulos e de sua doutrina (Jo 18.19). O
próprio Jesus responde destacando o caráter público de seu ensino, apelando à
transparência e à verdade (Jo 18.20–21). Em seguida, João 18.24 afirma
explicitamente que Jesus foi enviado amarrado a Caifás, o sumo sacerdote
oficial, responsável por conduzir o julgamento formal diante do Sinédrio.
Contexto histórico e jurídico
No Antigo Testamento, o sumo sacerdote ocupava um papel
central na vida religiosa de Israel. Sua função era vitalícia e deveria ser
exercida por um único indivíduo, conforme estabelecido na Lei mosaica (Lv
21.10; Nm 35.25). O sumo sacerdote atuava como mediador entre Deus e o povo,
especialmente no Dia da Expiação.
Entretanto, no período do Segundo Templo,
especialmente sob o domínio romano, o sumo sacerdócio perdeu seu caráter
sagrado e passou a ser controlado por interesses políticos. Flávio Josefo
relata que os romanos nomeavam e destituíam sumos sacerdotes conforme sua
conveniência, transformando o cargo em instrumento de poder e manipulação
política.
Esse cenário explica a coexistência de duas figuras
sacerdotais no relato joanino: Anás, como autoridade de fato, e Caifás, como
autoridade oficial. Tal situação representa uma ruptura com o modelo bíblico do
sacerdócio e evidencia a decadência institucional da liderança religiosa
judaica.
Além disso, o interrogatório de Jesus diante de
Anás apresenta sérias irregularidades jurídicas. O questionamento ocorreu à
noite, sem testemunhas formais e antes da reunião oficial do Sinédrio, o que
contraria os próprios princípios da lei judaica. Esse contexto reforça o
caráter injusto e ilegítimo do processo.
No Antigo Testamento, o sumo sacerdote deveria ser
único e exercer sua função de forma vitalícia (Lv 21.10; Nm 35.25). Contudo, no
período do domínio romano, o cargo tornou-se politizado e instável. Segundo
Flávio Josefo, os romanos passaram a nomear e destituir sumos sacerdotes
conforme seus interesses políticos, o que contribuiu para a corrupção da
liderança religiosa judaica.
Esse cenário explica a coexistência de duas figuras
sacerdotais: Anás, como autoridade de fato, e Caifás, como autoridade oficial.
Tal situação evidencia a decadência institucional do sacerdócio no tempo de
Jesus.
Significado teológico
Teologicamente, o Evangelho de João utiliza o
episódio do interrogatório diante de Anás para revelar o contraste entre o
sacerdócio humano, corrompido pelo poder político e pela instabilidade
institucional, e o sacerdócio perfeito de Cristo. João não apresenta Anás e
Caifás apenas como personagens históricos, mas como símbolos de um sistema
religioso que havia se afastado da vontade de Deus.
João Calvino afirma que “Cristo, ao ser interrogado
injustamente, expõe a cegueira daqueles que ocupavam o mais alto ofício
religioso, mas estavam afastados da verdade de Deus”.¹ Para Calvino, o problema
não era apenas moral, mas espiritual: líderes religiosos haviam perdido a
capacidade de discernir a presença do próprio Deus entre eles.
Agostinho observa que, ao responder a Anás, Jesus
não se defende como um réu comum, mas ensina como Mestre.² Segundo o bispo de
Hipona, Cristo se coloca acima do julgamento humano, pois sua autoridade
procede do Pai e não das instituições terrenas.
Martinho Lutero interpreta esse episódio como uma
demonstração clara da oposição entre a justiça humana e a justiça divina.³ Para
ele, o julgamento de Cristo revela como a lei, quando separada da graça e da
verdade, pode se tornar instrumento de opressão e condenação injusta.
John Stott destaca que o comportamento das
autoridades religiosas revela um sistema preocupado em preservar poder e
estabilidade, mesmo à custa da verdade.⁴ A firmeza e a serenidade de Cristo
diante dessas autoridades demonstram sua obediência voluntária ao plano
redentor de Deus.
F. F. Bruce acrescenta que o envio de Jesus
primeiro a Anás indica que o processo não começou como um julgamento legal, mas
como uma investigação informal e politicamente motivada.⁵ Isso reforça a
irregularidade do procedimento e a injustiça cometida contra Cristo.
O autor da Epístola aos Hebreus aprofunda essa
compreensão ao apresentar Cristo como o Sumo Sacerdote eterno, não segundo a
ordem levítica, marcada pela sucessão e fragilidade humana, mas segundo a ordem
de Melquisedeque (Hb 7.23–28). Assim, Anás e Caifás tornam-se símbolos da
falência do sacerdócio humano, enquanto Cristo é revelado como o mediador
perfeito e definitivo.
Exegese de João 18.13–24 (Análise Verso a Verso)
João 18.13
O versículo afirma que Jesus foi levado
“primeiramente a Anás”. O advérbio indica prioridade intencional, sugerindo que
o interrogatório diante de Anás não foi acidental, mas parte de uma estratégia
do sistema sacerdotal. A menção ao parentesco com Caifás revela a estrutura
familiar que dominava o poder religioso.
João 18.14
João recorda que Caifás havia aconselhado que
“convinha que um só homem morresse pelo povo”. Essa observação conecta o
interrogatório ao plano divino da redenção, mostrando que, mesmo através de
intenções perversas, Deus cumpria seus propósitos.
João 18.19
Anás
interroga Jesus sobre seus discípulos e sua doutrina. A ordem das perguntas
revela a preocupação das autoridades: primeiro controlar seguidores, depois
silenciar o ensino. O foco não é a verdade, mas a preservação do poder.
João 18.20–21
Jesus responde destacando a publicidade de seu
ministério. Ele apela ao testemunho público, denunciando a irregularidade do
interrogatório secreto. Exegeticamente, essa resposta reforça o tema joanino da
luz em contraste com as trevas.
João 18.22–23
A agressão física contra Jesus demonstra a
injustiça do processo. Sua resposta não é violenta, mas racional e moralmente
elevada, reafirmando sua inocência e autoridade ética.
João 18.24
O envio de Jesus, ainda amarrado, a Caifás confirma
o caráter preliminar do interrogatório de Anás. O detalhe das amarras enfatiza
a humilhação injusta do Filho de Deus.
Cristologia Joanina e o Sacerdócio em Hebreus
A Cristologia do Evangelho de João apresenta Jesus
como o Verbo eterno que se fez carne (Jo 1.1,14). Essa alta cristologia
encontra profundo diálogo com a Epístola aos Hebreus, especialmente no tema do
sacerdócio.
Enquanto Anás e Caifás representam um sacerdócio
transitório e politizado, Hebreus apresenta Cristo como Sumo Sacerdote eterno,
santo e perfeito (Hb 7.26). João não usa explicitamente o termo “sumo
sacerdote” para Jesus, mas constrói essa teologia de forma narrativa: Jesus é
interrogado, julgado e condenado, não por falta de autoridade, mas por possuir
autoridade superior.
Hebreus afirma que Cristo não oferece sacrifícios
repetidos, pois Ele mesmo se oferece uma vez por todas (Hb 9.12). O contraste
com o sistema sacerdotal representado por Anás é evidente: onde há corrupção e
injustiça, Cristo manifesta obediência e redenção.
Assim, João 18 não apenas descreve um evento
histórico, mas contribui para a teologia do Novo Testamento ao revelar que o
verdadeiro sacerdócio não reside em títulos humanos, mas na pessoa de Cristo.
Conclusão
A análise de João 18.13–24 demonstra que o
Evangelho de João descreve intencionalmente dois momentos distintos do
julgamento de Jesus: o interrogatório informal diante de Anás e o julgamento
formal sob Caifás. Essa distinção possui profundo significado histórico,
jurídico e teológico.
A exegese do texto revela a falência do sistema
sacerdotal judaico do primeiro século, dominado por interesses políticos e
familiares. Em contraste, a Cristologia joanina aponta para Jesus como a
revelação plena de Deus e o verdadeiro Sumo Sacerdote, conforme desenvolvido na
Epístola aos Hebreus.
Dessa forma, o episódio do primeiro interrogatório
de Jesus não apenas denuncia a injustiça humana, mas proclama a soberania divina
que transforma a condenação em redenção.
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- CALVINO, João. Comentário
do Evangelho de João. São Paulo: Paracletos, 2004.
- AGOSTINHO. Tratados sobre
o Evangelho de João. São Paulo: Paulus, 1998.
- LUTERO, Martinho. Comentários
sobre a Paixão de Cristo. São Paulo: Sinodal, 1995.
- STOTT, John. A Cruz de
Cristo. São Paulo: Vida Nova, 2007.
- BRUCE, F. F. O Evangelho
de João. São Paulo: Vida Nova, 2012.
Bibliografia
AGOSTINHO.
Tratados sobre o Evangelho de João. São Paulo: Paulus, 1998.
BÍBLIA.
Português. Bíblia Sagrada. Tradução Almeida Revista e Atualizada.
Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
BRUCE, F.
F. O Evangelho de João. São Paulo: Vida Nova, 2012.
CALVINO,
João. Comentário do Evangelho de João. São Paulo: Paracletos, 2004.
JOSEFO,
Flávio. Antiguidades Judaicas. Rio de Janeiro: CPAD, 2004.
LUTERO,
Martinho. Comentários sobre a Paixão de Cristo. São Paulo: Sinodal,
1995.
STOTT,
John. A Cruz de Cristo. São Paulo: Vida Nova, 2007.
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