segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

O Primeiro Interrogatório de Jesus: Anás e Caifás em João 18


                                                      


                                                                                Por. Josué de A Soares.

Introdução

O processo que levou Jesus à crucificação ocupa lugar central nos Evangelhos, possuindo grande relevância tanto histórica quanto teológica. Dentre os escritos neotestamentários, o Evangelho de João se diferencia ao apresentar informações próprias que aprofundam a análise dos eventos que precedem a morte de Cristo. Em João 18.13–24, o autor relata que Jesus foi conduzido inicialmente a Anás, onde ocorre um interrogatório preliminar, sendo posteriormente enviado, ainda amarrado, a Caifás, que exercia oficialmente o sumo sacerdócio.

A presença de duas autoridades sacerdotais no relato suscita importantes questões para o estudo bíblico-teológico: qual a razão de Jesus ser levado primeiro a Anás? Em que consistia a distinção entre a autoridade exercida por Anás e aquela atribuída a Caifás? Qual o propósito teológico dessa sequência narrativa? Tais indagações ultrapassam o campo meramente histórico e revelam a crítica do evangelista ao sistema religioso judaico vigente no primeiro século.

O presente artigo propõe-se a examinar João 18.13–24 sob uma perspectiva exegética, histórica e teológica, sustentando que o evangelista descreve de forma intencional dois momentos distintos no julgamento de Jesus. Além disso, busca-se demonstrar que esse episódio evidencia a crise e a falência do sacerdócio humano, ao mesmo tempo em que prepara o leitor para a compreensão de Cristo como o verdadeiro e eterno Sumo Sacerdote.

Anás e Caifás no relato bíblico

Conforme João 18.13, após sua prisão no Getsêmani, Jesus foi levado primeiramente a Anás, sogro de Caifás, que era o sumo sacerdote naquele ano. Essa informação é fundamental para a correta leitura do texto, pois indica que Anás não ocupava oficialmente o cargo, mas ainda exercia grande influência sobre o sacerdócio e sobre o Sinédrio.

Anás havia exercido o sumo sacerdócio entre os anos 6 e 15 d.C., nomeado pelas autoridades romanas. Mesmo após sua deposição, sua família continuou controlando o cargo, visto que cinco de seus filhos e seu genro Caifás ocuparam a função em momentos distintos. Esse domínio familiar transformou o sumo sacerdócio em uma instituição politizada e distante de sua finalidade bíblica original.

Durante esse primeiro interrogatório, Anás questiona Jesus acerca de seus discípulos e de sua doutrina (Jo 18.19). A resposta de Jesus é marcada pela clareza e pela transparência: Ele afirma que sempre ensinou publicamente, nas sinagogas e no templo, e que nada fez em segredo (Jo 18.20–21). Tal resposta não apenas demonstra a inocência de Jesus, mas também expõe a irregularidade do procedimento adotado.

João 18.24 afirma explicitamente que, após esse interrogatório inicial, Jesus foi enviado amarrado a Caifás, o sumo sacerdote oficial. Esse detalhe confirma que Anás realizou uma investigação informal, enquanto Caifás conduziria o julgamento formal diante do Sinédrio.

Conforme João 18.13, Jesus foi levado primeiramente a Anás, sogro de Caifás, que era o sumo sacerdote naquele ano. Anás havia exercido o sumo sacerdócio entre os anos 6 e 15 d.C., mas, mesmo após ser deposto pelas autoridades romanas, manteve grande influência sobre o sacerdócio judaico. Por essa razão, continuava sendo reconhecido como autoridade religiosa.

Durante esse primeiro interrogatório, Anás questiona Jesus acerca de seus discípulos e de sua doutrina (Jo 18.19). O próprio Jesus responde destacando o caráter público de seu ensino, apelando à transparência e à verdade (Jo 18.20–21). Em seguida, João 18.24 afirma explicitamente que Jesus foi enviado amarrado a Caifás, o sumo sacerdote oficial, responsável por conduzir o julgamento formal diante do Sinédrio.

Contexto histórico e jurídico

No Antigo Testamento, o sumo sacerdote ocupava um papel central na vida religiosa de Israel. Sua função era vitalícia e deveria ser exercida por um único indivíduo, conforme estabelecido na Lei mosaica (Lv 21.10; Nm 35.25). O sumo sacerdote atuava como mediador entre Deus e o povo, especialmente no Dia da Expiação.

Entretanto, no período do Segundo Templo, especialmente sob o domínio romano, o sumo sacerdócio perdeu seu caráter sagrado e passou a ser controlado por interesses políticos. Flávio Josefo relata que os romanos nomeavam e destituíam sumos sacerdotes conforme sua conveniência, transformando o cargo em instrumento de poder e manipulação política.

Esse cenário explica a coexistência de duas figuras sacerdotais no relato joanino: Anás, como autoridade de fato, e Caifás, como autoridade oficial. Tal situação representa uma ruptura com o modelo bíblico do sacerdócio e evidencia a decadência institucional da liderança religiosa judaica.

Além disso, o interrogatório de Jesus diante de Anás apresenta sérias irregularidades jurídicas. O questionamento ocorreu à noite, sem testemunhas formais e antes da reunião oficial do Sinédrio, o que contraria os próprios princípios da lei judaica. Esse contexto reforça o caráter injusto e ilegítimo do processo.

No Antigo Testamento, o sumo sacerdote deveria ser único e exercer sua função de forma vitalícia (Lv 21.10; Nm 35.25). Contudo, no período do domínio romano, o cargo tornou-se politizado e instável. Segundo Flávio Josefo, os romanos passaram a nomear e destituir sumos sacerdotes conforme seus interesses políticos, o que contribuiu para a corrupção da liderança religiosa judaica.

Esse cenário explica a coexistência de duas figuras sacerdotais: Anás, como autoridade de fato, e Caifás, como autoridade oficial. Tal situação evidencia a decadência institucional do sacerdócio no tempo de Jesus.

Significado teológico

Teologicamente, o Evangelho de João utiliza o episódio do interrogatório diante de Anás para revelar o contraste entre o sacerdócio humano, corrompido pelo poder político e pela instabilidade institucional, e o sacerdócio perfeito de Cristo. João não apresenta Anás e Caifás apenas como personagens históricos, mas como símbolos de um sistema religioso que havia se afastado da vontade de Deus.

João Calvino afirma que “Cristo, ao ser interrogado injustamente, expõe a cegueira daqueles que ocupavam o mais alto ofício religioso, mas estavam afastados da verdade de Deus”.¹ Para Calvino, o problema não era apenas moral, mas espiritual: líderes religiosos haviam perdido a capacidade de discernir a presença do próprio Deus entre eles.

Agostinho observa que, ao responder a Anás, Jesus não se defende como um réu comum, mas ensina como Mestre.² Segundo o bispo de Hipona, Cristo se coloca acima do julgamento humano, pois sua autoridade procede do Pai e não das instituições terrenas.

Martinho Lutero interpreta esse episódio como uma demonstração clara da oposição entre a justiça humana e a justiça divina.³ Para ele, o julgamento de Cristo revela como a lei, quando separada da graça e da verdade, pode se tornar instrumento de opressão e condenação injusta.

John Stott destaca que o comportamento das autoridades religiosas revela um sistema preocupado em preservar poder e estabilidade, mesmo à custa da verdade.⁴ A firmeza e a serenidade de Cristo diante dessas autoridades demonstram sua obediência voluntária ao plano redentor de Deus.

F. F. Bruce acrescenta que o envio de Jesus primeiro a Anás indica que o processo não começou como um julgamento legal, mas como uma investigação informal e politicamente motivada.⁵ Isso reforça a irregularidade do procedimento e a injustiça cometida contra Cristo.

O autor da Epístola aos Hebreus aprofunda essa compreensão ao apresentar Cristo como o Sumo Sacerdote eterno, não segundo a ordem levítica, marcada pela sucessão e fragilidade humana, mas segundo a ordem de Melquisedeque (Hb 7.23–28). Assim, Anás e Caifás tornam-se símbolos da falência do sacerdócio humano, enquanto Cristo é revelado como o mediador perfeito e definitivo.

Exegese de João 18.13–24 (Análise Verso a Verso)

João 18.13

O versículo afirma que Jesus foi levado “primeiramente a Anás”. O advérbio indica prioridade intencional, sugerindo que o interrogatório diante de Anás não foi acidental, mas parte de uma estratégia do sistema sacerdotal. A menção ao parentesco com Caifás revela a estrutura familiar que dominava o poder religioso.

João 18.14

João recorda que Caifás havia aconselhado que “convinha que um só homem morresse pelo povo”. Essa observação conecta o interrogatório ao plano divino da redenção, mostrando que, mesmo através de intenções perversas, Deus cumpria seus propósitos.

João 18.19

Anás interroga Jesus sobre seus discípulos e sua doutrina. A ordem das perguntas revela a preocupação das autoridades: primeiro controlar seguidores, depois silenciar o ensino. O foco não é a verdade, mas a preservação do poder.

João 18.20–21

Jesus responde destacando a publicidade de seu ministério. Ele apela ao testemunho público, denunciando a irregularidade do interrogatório secreto. Exegeticamente, essa resposta reforça o tema joanino da luz em contraste com as trevas.

João 18.22–23

A agressão física contra Jesus demonstra a injustiça do processo. Sua resposta não é violenta, mas racional e moralmente elevada, reafirmando sua inocência e autoridade ética.

João 18.24

O envio de Jesus, ainda amarrado, a Caifás confirma o caráter preliminar do interrogatório de Anás. O detalhe das amarras enfatiza a humilhação injusta do Filho de Deus.

Cristologia Joanina e o Sacerdócio em Hebreus

A Cristologia do Evangelho de João apresenta Jesus como o Verbo eterno que se fez carne (Jo 1.1,14). Essa alta cristologia encontra profundo diálogo com a Epístola aos Hebreus, especialmente no tema do sacerdócio.

Enquanto Anás e Caifás representam um sacerdócio transitório e politizado, Hebreus apresenta Cristo como Sumo Sacerdote eterno, santo e perfeito (Hb 7.26). João não usa explicitamente o termo “sumo sacerdote” para Jesus, mas constrói essa teologia de forma narrativa: Jesus é interrogado, julgado e condenado, não por falta de autoridade, mas por possuir autoridade superior.

Hebreus afirma que Cristo não oferece sacrifícios repetidos, pois Ele mesmo se oferece uma vez por todas (Hb 9.12). O contraste com o sistema sacerdotal representado por Anás é evidente: onde há corrupção e injustiça, Cristo manifesta obediência e redenção.

Assim, João 18 não apenas descreve um evento histórico, mas contribui para a teologia do Novo Testamento ao revelar que o verdadeiro sacerdócio não reside em títulos humanos, mas na pessoa de Cristo.

 

 

Conclusão

A análise de João 18.13–24 demonstra que o Evangelho de João descreve intencionalmente dois momentos distintos do julgamento de Jesus: o interrogatório informal diante de Anás e o julgamento formal sob Caifás. Essa distinção possui profundo significado histórico, jurídico e teológico.

A exegese do texto revela a falência do sistema sacerdotal judaico do primeiro século, dominado por interesses políticos e familiares. Em contraste, a Cristologia joanina aponta para Jesus como a revelação plena de Deus e o verdadeiro Sumo Sacerdote, conforme desenvolvido na Epístola aos Hebreus.

Dessa forma, o episódio do primeiro interrogatório de Jesus não apenas denuncia a injustiça humana, mas proclama a soberania divina que transforma a condenação em redenção.

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  1. CALVINO, João. Comentário do Evangelho de João. São Paulo: Paracletos, 2004.
  2. AGOSTINHO. Tratados sobre o Evangelho de João. São Paulo: Paulus, 1998.
  3. LUTERO, Martinho. Comentários sobre a Paixão de Cristo. São Paulo: Sinodal, 1995.
  4. STOTT, John. A Cruz de Cristo. São Paulo: Vida Nova, 2007.
  5. BRUCE, F. F. O Evangelho de João. São Paulo: Vida Nova, 2012.

Bibliografia

AGOSTINHO. Tratados sobre o Evangelho de João. São Paulo: Paulus, 1998.

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução Almeida Revista e Atualizada. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

BRUCE, F. F. O Evangelho de João. São Paulo: Vida Nova, 2012.

CALVINO, João. Comentário do Evangelho de João. São Paulo: Paracletos, 2004.

JOSEFO, Flávio. Antiguidades Judaicas. Rio de Janeiro: CPAD, 2004.

LUTERO, Martinho. Comentários sobre a Paixão de Cristo. São Paulo: Sinodal, 1995.

STOTT, John. A Cruz de Cristo. São Paulo: Vida Nova, 2007.

 

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