Por Josué de Asevedo Soares
RESUMO
Este artigo examina as doutrinas do livre-arbítrio, predestinação e livre agência no desenvolvimento da teologia cristã,
considerando suas implicações filosóficas, bíblicas e históricas. Analisa-se o
pensamento de cinco figuras fundamentais: Agostinho de Hipona, Martinho Lutero, João Calvino, Jacó Armínio e
John Wesley, destacando continuidades e rupturas na construção teológica da
relação entre soberania divina e responsabilidade humana. Argumenta-se que as
divergências entre esses pensadores representam não apenas diferenças de
interpretação, mas modelos distintos de antropologia teológica e hermenêutica
da graça. O estudo conclui que a tensão entre o governo soberano de Deus e a
liberdade da criatura permanece constitutiva da fé cristã, exigindo uma
abordagem equilibrada que respeite tanto a revelação bíblica quanto a
complexidade da experiência humana.
Palavras-chave:
Livre-arbítrio. Predestinação. Livre agência. Soteriologia. Teologia histórica.
ABSTRACT
This article examines the doctrines of free will, predestination, and
free agency in the development of Christian theology, considering their
philosophical, biblical, and historical implications. It analyzes the thought
of five key figures: Augustine of Hippo, Martin Luther, John Calvin, Jacob
Arminius, and John Wesley, highlighting continuities and ruptures in the
theological construction of the relationship between divine sovereignty and
human responsibility. It argues that the divergences among these thinkers
represent not only differences in interpretation but also distinct models of
theological anthropology and hermeneutics of grace. The study concludes that
the tension between God's sovereign rule and the freedom of the creature
remains constitutive of the Christian faith, requiring a balanced approach that
respects both biblical revelation and the complexity of human experience.
Keywords:
Free will. Predestination. Free agency. Soteriology. Historical theology.
INTRODUÇÃO
O debate entre livre-arbítrio, predestinação e livre agência
atravessa toda a história da teologia cristã. Desde os primeiros séculos da
Igreja até os movimentos reformados e metodistas, a pergunta sobre como o ser
humano pode agir livremente em um universo regido pela soberania absoluta de
Deus permanece central. Esta tensão se manifesta de forma especialmente intensa
nas controvérsias entre agostinianos e pelagianos, entre reformadores e
humanistas, e mais tarde entre calvinistas e arminianos.
Neste artigo
expandido, pretende-se apresentar uma análise ampla dessa problemática,
considerando não apenas o pensamento de cinco teólogos representativos, mas
também o contexto histórico, filosófico e eclesiástico de cada período. O
objetivo é construir uma visão panorâmica, crítica e comparativa, capaz de
iluminar a complexidade e a profundidade da questão.
1. FUNDAMENTAÇÃO BÍBLICA: Soberania e liberdade na Escritura
Antes de analisar os teólogos, torna-se
necessário abordar o fundamento bíblico das doutrinas em questão. A Bíblia
apresenta tanto a afirmação da soberania absoluta de Deus quanto a
responsabilidade moral humana.
1.1
Textos que enfatizam a soberania divina
·
Efésios 1.4–11 – “Nos predestinou [...] segundo
o conselho da sua vontade.”
·
Romanos 8.29–30 – A cadeia
“presciência–predestinação–chamado–justificação–glorificação.”
·
Daniel 4.35 – “Ele faz conforme a sua vontade [...]
não há quem possa resistir à sua mão.”
·
Atos 13.48 – “Creram todos os que haviam sido
destinados para a vida eterna.”
1.2
Textos que enfatizam a responsabilidade humana
·
Deuteronômio 30.19 – “Escolhe, pois, a vida.”
·
Josué 24.15 – “Escolhei hoje a quem sirvais.”
·
Mateus 23.37 – “Não quisestes.”
·
Apocalipse 22.17 – “Quem quiser, venha.”
A tensão bíblica entre soberania e liberdade
tornou-se o campo de debate para os teólogos posteriores.
2. AGOSTINHO DE HIPONA: O MODELO DA GRAÇA EFICAZ
2.1
Contexto histórico: a controvérsia pelagiana
Agostinho entra no debate sobre a liberdade
humana em confronto direto com Pelágio, que afirmava que o ser humano possui total
capacidade de escolher o bem sem a ajuda da graça. Agostinho, ao contrário,
sustentava que o pecado original corrompeu radicalmente a vontade¹.
2.2
A natureza da vontade após a Queda
Segundo Agostinho, a vontade humana permanece
livre no sentido psicológico, mas é incapaz de
escolher o bem salvífico sem o auxílio da graça. A liberdade plena só existe
quando a alma é transformada pelo amor de Deus².
2.3
A predestinação como manifestação da graça
Agostinho afirma que Deus escolhe
gratuitamente os que serão salvos, não com base em méritos previstos, mas por
pura misericórdia. A predestinação não é apenas presciência, mas determinação
da vontade divina³.
2.4
Livre agência agostiniana
A vontade humana age “livremente”, porém sob a
influência irresistível da graça eficaz. Agostinho cria assim a base do que
mais tarde será o determinismo teológico reformado.
3. LUTERO: A ESCRAVIDÃO DA VONTADE E A CENTRALIDADE DA GRAÇA
3.1
Lutero vs. Erasmo
A famosa obra De Servo Arbitrio (Da
Escravidão da Vontade) surge como resposta à defesa humanista de Erasmo, que
preservava algum grau de liberdade humana. Lutero, porém, entende que tal
liberdade comprometeria a centralidade da graça⁴.
3.2
A vontade como “servo arbitrio”
Lutero sustenta que a vontade é escrava do
pecado. O que o ser humano faz, faz voluntariamente, mas sua vontade está
cativa. Assim, a liberdade só é real quando Deus a liberta por meio do
Evangelho⁵.
3.3
Predestinação e consolo
Para Lutero, a predestinação não é especulativa,
mas pastoral: ela garante que a salvação está segura nas mãos de Deus. A livre
agência restaurada é fruto da ação do Espírito Santo.
4. CALVINO: PROVIDÊNCIA, DECRETOS E RESPONSABILIDADE HUMANA
4.1
O sistema teológico reformado
Calvino não foi o primeiro a defender a
predestinação incondicional, mas foi quem melhor a sistematizou. Em suas Institutas, defende que
Deus decretou eternamente todas as coisas⁶.
4.2
Predestinação dupla
Calvino reconhece que a eleição implica também
a reprovação. Deus escolhe alguns para a vida e permite que outros permaneçam
em sua própria perdição⁷.
4.3
Livre agência sob soberania
Calvino distingue livre-arbítrio de livre agência. O ser
humano pode agir voluntariamente, mas não está livre para escolher Deus sem
regeneração. Ainda assim, suas escolhas são reais e moralmente responsáveis⁸.
4.4
A compatibilidade entre soberania e responsabilidade
Aqui surge o que chamaríamos hoje de compatibilismo: Deus
determina, mas o homem age conforme sua vontade. Essa síntese influencia toda a
teologia reformada posterior.
5. ARMÍNIO: PREDESTINAÇÃO CONDICIONAL E GRAÇA PREVENIENTE
5.1
Revisão do sistema reformado
Armínio não rejeita a soberania de Deus, mas
rejeita que esta anule a liberdade humana. Para ele, Deus decreta salvar “os
que crerem”⁹.
5.2
A graça preveniente
Armínio sustenta que Deus concede graça a
todos, capacitando-os a responder ao chamado. Assim, a responsabilidade humana
é real e a salvação é cooperativa – embora dependente da graça¹⁰.
5.3
Livre-arbítrio capacitado
Armínio afirma que o livre-arbítrio, por si
mesmo, está morto; porém, é restaurado pela graça que antecede a fé¹¹.
6. JOHN WESLEY: O ARMINIANISMO EVANGÉLICO E A LIBERDADE
COOPERATIVA
6.1
Influência de Armínio e expansão metodista
Wesley amplia o pensamento arminiano,
enfatizando a universalidade da graça preveniente.
6.2
Universalidade da graça
Ao contrário do calvinismo, Wesley afirma que
Cristo morreu por todos, e que todos recebem graça suficiente para crer¹².
6.3
Livre agência
A liberdade humana é restaurada de modo que o
indivíduo pode aceitar ou rejeitar a oferta de salvação. A predestinação, no
sentido wesleyano, é apenas a presciência da fé.
6.4
Santificação e cooperação
Wesley também desenvolve uma visão de
cooperação contínua entre graça e vontade humana na santificação.
7. CONTRASTES ENTRE OS
TEÓLOGOS
Tabela
expandida:
|
Teólogo |
Estado da vontade |
Natureza da predestinação |
Papel da graça |
Livre agência |
|
Agostinho |
Enfraquecida |
Incondicional |
Irresistível |
Sim,
após graça |
|
Lutero |
Escravizada |
Soberana |
Libertadora |
Sim,
após regeneração |
|
Calvino |
Escrava
do pecado |
Dupla/incondicional |
Eficaz |
Compatibilista |
|
Armínio |
Restaurada |
Condicional |
Preveniente |
Cooperativa |
|
Wesley |
Restaurada
universalmente |
Condicional |
Universal |
Cooperativa
e responsável |
CONCLUSÃO
A análise demonstra que a tradição cristã nunca
alcançou consenso pleno sobre a relação entre liberdade humana e soberania
divina. O contraste entre Agostinho, Lutero e Calvino com Armínio e Wesley
revela diferenças profundas de antropologia e soteriologia. Entretanto, todos
afirmam:
- Deus é soberano.
- O ser humano é responsável.
- A graça é essencial.
Essa tensão permanecerá como mistério teológico,
estimulando reflexão contínua na teologia contemporânea.
_______________________________________________________________
1. AGOSTINHO. De natura et
gratia.
2.
_____. Enchiridion.
3.
_____. De
praedestinatione sanctorum.
4.
LUTERO,
Martinho. De Servo Arbitrio.
5.
_____. Comentário
de Gálatas.
6.
CALVINO,
João. Institutas da Religião Cristã.
7.
_____. Comentários
ao Novo Testamento.
8.
BOETTNER,
Loraine. A Predestinação.
9.
ARMÍNIO,
Jacó. Works of Jacobus Arminius.
10.
WESLEY,
John. Sermons on Several Occasions.
11.
OLSON,
Roger. Arminian Theology.
12. HORTON, Stanley. Teologia
Sistemática Pentecosta