Por Josué de Asevedo Soares
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo analisar, do
ponto de vista teológico e histórico, três conceitos fundamentais da doutrina
cristã: livre-arbítrio, predestinação e
livre agência. Para isso, parte-se do desenvolvimento histórico dessas
categorias, com destaque para quatro dos mais influentes pensadores da tradição
cristã ocidental: Agostinho de Hipona,
Martinho Lutero, João Calvino e John Wesley. Cada um, em seu contexto,
contribuiu significativamente para a compreensão da relação entre soberania
divina e responsabilidade humana. O estudo mostra como a teologia da graça, a
corrupção da natureza humana e a leitura bíblica moldaram diferentes
interpretações, resultando em sistemas doutrinários distintos, porém inter-relacionados.
Palavras-chave: Livre-arbítrio;
Predestinação; Livre agência; Agostinho; Lutero; Calvino; Wesley; Soteriologia.
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ABSTRACT
This article aims to analyze, from a theological
and historical perspective, three fundamental concepts of Christian doctrine: free will, predestination, and free agency.
It examines the development of these categories with special attention to four
influential thinkers of the Western Christian tradition: Augustine of Hippo, Martin Luther, John
Calvin, and John Wesley. Each contributed decisively to the
understanding of the relationship between divine sovereignty and human
responsibility. The study demonstrates how views on grace, human corruption,
and biblical interpretation shaped different doctrinal systems that, while
distinct, remain interconnected.
Keywords: Free will; Predestination; Free
agency; Augustine; Luther; Calvin; Wesley; Soteriology.
INTRODUÇÃO
A tensão entre a soberania de Deus e a liberdade
humana é um dos temas mais centrais e debatidos da teologia cristã. Desde o
período patrístico, passando pela Reforma e chegando ao metodismo do século
XVIII, grandes teólogos ofereceram respostas distintas à pergunta: qual é a
verdadeira relação entre a ação de Deus e a decisão humana?
Este
artigo examina essa temática sob a ótica de Agostinho, Lutero, Calvino
e Wesley, enfatizando três conceitos-chave:
(1) livre-arbítrio,
(2) predestinação e
(3) livre agência.
O
objetivo é apresentar uma análise comparativa fundamentada em escritos
clássicos desses autores, situando-os em seus contextos históricos e avaliando
suas contribuições para o pensamento teológico posterior.
FUNDAMENTOS BÍBLICOS DOS
CONCEITOS
A Escritura
apresenta simultaneamente:
- A soberania absoluta de Deus
(Sl 115.3; Rm 8.29–30).
- A responsabilidade moral
humana (Js 24.15; Rm 2.1–16).
Essa
dualidade estabeleceu a base para interpretações distintas ao longo da história.
O livre-arbítrio
aparece implicitamente na capacidade humana de obedecer ou desobedecer.
A predestinação é tratada principalmente por Paulo, especialmente em
Romanos 8 e Efésios 1.
A livre agência é uma categoria teológica derivada dos textos que afirmam
simultaneamente a soberania de Deus e a ação voluntária humana (Gn 50.20; At
2.23).
AGOSTINHO DE HIPONA: GRAÇA
EFICAZ E VONTADE CURADA
Agostinho
(354–430) foi decisivo na formulação da doutrina da graça. Sua controvérsia com
Pelágio o levou a enfatizar a incapacidade humana após o pecado original. Para
ele:
- A vontade humana existe, mas
está escravizada ao pecado.
- O livre-arbítrio, embora
real, é incapaz de conduzir à salvação sem a intervenção da graça.
- A graça é eficaz,
transformando a vontade e capacitando-a a crer.
Agostinho
afirma:
“O
livre-arbítrio não se perdeu, mas se tornou inútil, a não ser que a graça venha
em auxílio.”¹
Quanto à
predestinação, o bispo de Hipona defende que Deus elege por graça, não
por méritos previstos.² Sua visão serviu de base para a teologia reformada
posterior.
LUTERO: A SERVIDÃO DA
VONTADE
Martinho
Lutero (1483–1546), no debate com Erasmo, escreveu sua obra monumental De
Servo Arbitrio (“Da Servidão da Vontade”). Para ele:
- O livre-arbítrio existe
apenas no nível civil.
- No que diz respeito à
salvação, a vontade está totalmente incapaz.
- O ser humano é
espiritualmente “cativo”, incapaz de produzir fé ou
arrependimento.³
Lutero
afirma:
“A
vontade humana é como um cavalo: se Deus montá-la, vai para onde Ele quer; se o
diabo montá-la, também vai para onde ele deseja.”⁴
Sua
compreensão da predestinação é forte, embora menos sistemática que a de
Calvino. Para Lutero, a salvação é monergística: Deus opera sozinho.
CALVINO: SOBERANIA DIVINA E
LIVRE AGÊNCIA
João
Calvino (1509–1564) desenvolve uma teologia mais sistematizada, especialmente
nas Institutas. Ele distingue entre:
- livre-arbítrio natural, que permanece operante
para decisões comuns da vida;
- incapacidade moral, que impede o ser humano de
buscar a Deus sem regeneração.
Calvino
escreve:
“A
vontade humana não é destruída, mas inclinada ao mal de tal modo que não pode
querer o bem sem a graça de Deus.”⁵
Calvino
também introduz fortemente o conceito de livre agência:
O homem
age livremente segundo seu desejo, mas Deus, em Sua soberania, ordena todas as
coisas com sabedoria.⁶
Trata-se
da “liberdade compatibilista”, na qual:
- a liberdade humana não é
autônoma,
- mas coerente com o decreto
divino.
JOHN WESLEY: LIVRE-ARBÍTRIO
RESTAURADO PELA GRAÇA
John
Wesley (1703–1791), fundador do metodismo, reagiu ao determinismo calvinista
enfatizando:
- A universalidade da graça
(Cristo morreu por todos);
- A graça preveniente,
que restaura o livre-arbítrio para que o pecador possa responder ao
evangelho;
- A predestinação baseada na
presciência de Deus.
Wesley
afirma:
“A graça
preveniente é suficiente para capacitar todos os homens a crer, se assim
desejarem.”⁷
Assim,
diferente de Agostinho, Lutero e Calvino, Wesley sustenta uma visão
sinergística: a salvação envolve uma resposta livre, capacitada pela graça.
COMPARAÇÃO SISTEMÁTICA
|
Tema |
Agostinho |
Lutero |
Calvino |
Wesley |
|
Natureza
da vontade |
Escravizada
ao pecado |
Serva,
totalmente incapaz |
Inclinada
ao mal |
Enferma,
mas restaurada pela graça |
|
Predestinação |
Incondicional |
Forte,
mas pastoral |
Incondicional
e sistemática |
Condicional
(presciência) |
|
Graça |
Eficaz |
Eficaz |
Irresistível |
Preveniente
e resistível |
|
Livre
agência |
Implícita |
Limitada |
Compatibilista |
Sinergista |
CONCLUSÃO
A relação
entre livre-arbítrio, predestinação e livre agência continua sendo uma das mais
profundas questões da teologia cristã. Agostinho lançou os fundamentos, Lutero
radicalizou a incapacidade humana, Calvino sistematizou a soberania divina e
Wesley recuperou a participação humana mediante a graça preveniente.
Conclui-se
que:
- Todos afirmam tanto
soberania divina quanto responsabilidade humana.
- Divergem na ordem lógica
da salvação.
- A tensão não é um problema a
ser resolvido, mas um mistério a ser reverenciado.
O diálogo
entre essas tradições mostra que o cristianismo histórico não é monolítico, mas
pluriforme, e que cada sistema contribui para uma compreensão mais rica da
relação entre Deus e o ser humano.
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- AGOSTINHO, A Graça e o
Livre-Arbítrio, p. 45.
- AGOSTINHO, De
praedestinatione sanctorum, p. 22.
- LUTERO, Da Servidão da
Vontade, p. 37.
- Ibid., p. 45.
- CALVINO, Institutas,
III.2.8.
- Ibid., I.16.9.
- WESLEY, Sermões, v. 1, p. 112
Bibliografia
AGOSTINHO.
De natura et gratia. Trad. São Paulo: Paulus, 2000.
AGOSTINHO. A Graça e o Livre-Arbítrio. São Paulo: Paulus, 1999.
CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. 2 v. São Paulo: Cultura
Cristã, 2006.
LUTERO, Martinho. Da Servidão da Vontade. São Leopoldo: Sinodal, 2001.
WESLEY, John. Sermões. Rio de Janeiro: CPAD, 2005.
WESLEY, John. Tratado sobre a Perfeição Cristã. São Paulo: Editeo, 2010.
MCGRATH, Alister. Teologia Histórica. São Paulo: Vida Nova, 2012.
OLSON, Roger. Arminian Theology. Downers Grove: IVP, 2006.
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