sexta-feira, 14 de novembro de 2025

LIVRE-ARBÍTRIO, PREDESTINAÇÃO E LIVRE AGÊNCIA: UMA ANÁLISE TEOLÓGICA COMPARATIVA À LUZ DE AGOSTINHO, LUTERO, CALVINO, ARMÍNIO E WESLEY

 

                                               


                                                                          
Por Josué de Asevedo Soares

RESUMO

Este artigo examina as doutrinas do livre-arbítrio, predestinação e livre agência no desenvolvimento da teologia cristã, considerando suas implicações filosóficas, bíblicas e históricas. Analisa-se o pensamento de cinco figuras fundamentais: Agostinho de Hipona, Martinho Lutero, João Calvino, Jacó Armínio e John Wesley, destacando continuidades e rupturas na construção teológica da relação entre soberania divina e responsabilidade humana. Argumenta-se que as divergências entre esses pensadores representam não apenas diferenças de interpretação, mas modelos distintos de antropologia teológica e hermenêutica da graça. O estudo conclui que a tensão entre o governo soberano de Deus e a liberdade da criatura permanece constitutiva da fé cristã, exigindo uma abordagem equilibrada que respeite tanto a revelação bíblica quanto a complexidade da experiência humana.


Palavras-chave: Livre-arbítrio. Predestinação. Livre agência. Soteriologia. Teologia histórica.

ABSTRACT

This article examines the doctrines of free will, predestination, and free agency in the development of Christian theology, considering their philosophical, biblical, and historical implications. It analyzes the thought of five key figures: Augustine of Hippo, Martin Luther, John Calvin, Jacob Arminius, and John Wesley, highlighting continuities and ruptures in the theological construction of the relationship between divine sovereignty and human responsibility. It argues that the divergences among these thinkers represent not only differences in interpretation but also distinct models of theological anthropology and hermeneutics of grace. The study concludes that the tension between God's sovereign rule and the freedom of the creature remains constitutive of the Christian faith, requiring a balanced approach that respects both biblical revelation and the complexity of human experience.

Keywords: Free will. Predestination. Free agency. Soteriology. Historical theology.

INTRODUÇÃO

O debate entre livre-arbítrio, predestinação e livre agência atravessa toda a história da teologia cristã. Desde os primeiros séculos da Igreja até os movimentos reformados e metodistas, a pergunta sobre como o ser humano pode agir livremente em um universo regido pela soberania absoluta de Deus permanece central. Esta tensão se manifesta de forma especialmente intensa nas controvérsias entre agostinianos e pelagianos, entre reformadores e humanistas, e mais tarde entre calvinistas e arminianos.

Neste artigo expandido, pretende-se apresentar uma análise ampla dessa problemática, considerando não apenas o pensamento de cinco teólogos representativos, mas também o contexto histórico, filosófico e eclesiástico de cada período. O objetivo é construir uma visão panorâmica, crítica e comparativa, capaz de iluminar a complexidade e a profundidade da questão.

1. FUNDAMENTAÇÃO BÍBLICA: Soberania e liberdade na Escritura

Antes de analisar os teólogos, torna-se necessário abordar o fundamento bíblico das doutrinas em questão. A Bíblia apresenta tanto a afirmação da soberania absoluta de Deus quanto a responsabilidade moral humana.

1.1 Textos que enfatizam a soberania divina

·        Efésios 1.4–11 – “Nos predestinou [...] segundo o conselho da sua vontade.”

·        Romanos 8.29–30 – A cadeia “presciência–predestinação–chamado–justificação–glorificação.”

·        Daniel 4.35 – “Ele faz conforme a sua vontade [...] não há quem possa resistir à sua mão.”

·        Atos 13.48 – “Creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna.”

1.2 Textos que enfatizam a responsabilidade humana

·        Deuteronômio 30.19 – “Escolhe, pois, a vida.”

·        Josué 24.15 – “Escolhei hoje a quem sirvais.”

·        Mateus 23.37 – “Não quisestes.”

·        Apocalipse 22.17 – “Quem quiser, venha.”

A tensão bíblica entre soberania e liberdade tornou-se o campo de debate para os teólogos posteriores.

2. AGOSTINHO DE HIPONA: O MODELO DA GRAÇA EFICAZ

2.1 Contexto histórico: a controvérsia pelagiana

Agostinho entra no debate sobre a liberdade humana em confronto direto com Pelágio, que afirmava que o ser humano possui total capacidade de escolher o bem sem a ajuda da graça. Agostinho, ao contrário, sustentava que o pecado original corrompeu radicalmente a vontade¹.

2.2 A natureza da vontade após a Queda

Segundo Agostinho, a vontade humana permanece livre no sentido psicológico, mas é incapaz de escolher o bem salvífico sem o auxílio da graça. A liberdade plena só existe quando a alma é transformada pelo amor de Deus².

2.3 A predestinação como manifestação da graça

Agostinho afirma que Deus escolhe gratuitamente os que serão salvos, não com base em méritos previstos, mas por pura misericórdia. A predestinação não é apenas presciência, mas determinação da vontade divina³.

2.4 Livre agência agostiniana

A vontade humana age “livremente”, porém sob a influência irresistível da graça eficaz. Agostinho cria assim a base do que mais tarde será o determinismo teológico reformado.

 

3. LUTERO: A ESCRAVIDÃO DA VONTADE E A CENTRALIDADE DA GRAÇA

3.1 Lutero vs. Erasmo

A famosa obra De Servo Arbitrio (Da Escravidão da Vontade) surge como resposta à defesa humanista de Erasmo, que preservava algum grau de liberdade humana. Lutero, porém, entende que tal liberdade comprometeria a centralidade da graça⁴.

3.2 A vontade como “servo arbitrio”

Lutero sustenta que a vontade é escrava do pecado. O que o ser humano faz, faz voluntariamente, mas sua vontade está cativa. Assim, a liberdade só é real quando Deus a liberta por meio do Evangelho⁵.

3.3 Predestinação e consolo

Para Lutero, a predestinação não é especulativa, mas pastoral: ela garante que a salvação está segura nas mãos de Deus. A livre agência restaurada é fruto da ação do Espírito Santo.

4. CALVINO: PROVIDÊNCIA, DECRETOS E RESPONSABILIDADE HUMANA

4.1 O sistema teológico reformado

Calvino não foi o primeiro a defender a predestinação incondicional, mas foi quem melhor a sistematizou. Em suas Institutas, defende que Deus decretou eternamente todas as coisas⁶.

4.2 Predestinação dupla

Calvino reconhece que a eleição implica também a reprovação. Deus escolhe alguns para a vida e permite que outros permaneçam em sua própria perdição⁷.

4.3 Livre agência sob soberania

Calvino distingue livre-arbítrio de livre agência. O ser humano pode agir voluntariamente, mas não está livre para escolher Deus sem regeneração. Ainda assim, suas escolhas são reais e moralmente responsáveis⁸.

4.4 A compatibilidade entre soberania e responsabilidade

Aqui surge o que chamaríamos hoje de compatibilismo: Deus determina, mas o homem age conforme sua vontade. Essa síntese influencia toda a teologia reformada posterior.

5. ARMÍNIO: PREDESTINAÇÃO CONDICIONAL E GRAÇA PREVENIENTE

5.1 Revisão do sistema reformado

Armínio não rejeita a soberania de Deus, mas rejeita que esta anule a liberdade humana. Para ele, Deus decreta salvar “os que crerem”⁹.

5.2 A graça preveniente

Armínio sustenta que Deus concede graça a todos, capacitando-os a responder ao chamado. Assim, a responsabilidade humana é real e a salvação é cooperativa – embora dependente da graça¹⁰.

5.3 Livre-arbítrio capacitado

Armínio afirma que o livre-arbítrio, por si mesmo, está morto; porém, é restaurado pela graça que antecede a fé¹¹.

6. JOHN WESLEY: O ARMINIANISMO EVANGÉLICO E A LIBERDADE COOPERATIVA

6.1 Influência de Armínio e expansão metodista

Wesley amplia o pensamento arminiano, enfatizando a universalidade da graça preveniente.

6.2 Universalidade da graça

Ao contrário do calvinismo, Wesley afirma que Cristo morreu por todos, e que todos recebem graça suficiente para crer¹².

6.3 Livre agência

A liberdade humana é restaurada de modo que o indivíduo pode aceitar ou rejeitar a oferta de salvação. A predestinação, no sentido wesleyano, é apenas a presciência da fé.

6.4 Santificação e cooperação

Wesley também desenvolve uma visão de cooperação contínua entre graça e vontade humana na santificação.

7. CONTRASTES ENTRE OS TEÓLOGOS

Tabela expandida:

Teólogo

Estado da vontade

Natureza da predestinação

Papel da graça

Livre agência

Agostinho

Enfraquecida

Incondicional

Irresistível

Sim, após graça

Lutero

Escravizada

Soberana

Libertadora

Sim, após regeneração

Calvino

Escrava do pecado

Dupla/incondicional

Eficaz

Compatibilista

Armínio

Restaurada

Condicional

Preveniente

Cooperativa

Wesley

Restaurada universalmente

Condicional

Universal

Cooperativa e responsável


CONCLUSÃO

A análise demonstra que a tradição cristã nunca alcançou consenso pleno sobre a relação entre liberdade humana e soberania divina. O contraste entre Agostinho, Lutero e Calvino com Armínio e Wesley revela diferenças profundas de antropologia e soteriologia. Entretanto, todos afirmam:

  • Deus é soberano.
  • O ser humano é responsável.
  • A graça é essencial.

Essa tensão permanecerá como mistério teológico, estimulando reflexão contínua na teologia contemporânea.

_______________________________________________________________

1.     AGOSTINHO. De natura et gratia.  

2.     _____. Enchiridion.

3.     _____. De praedestinatione sanctorum.

4.     LUTERO, Martinho. De Servo Arbitrio.

5.     _____. Comentário de Gálatas.

6.     CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã.

7.     _____. Comentários ao Novo Testamento.

8.     BOETTNER, Loraine. A Predestinação.

9.     ARMÍNIO, Jacó. Works of Jacobus Arminius.

10.  WESLEY, John. Sermons on Several Occasions.

11.  OLSON, Roger. Arminian Theology.

12.  HORTON, Stanley. Teologia Sistemática Pentecosta

 

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