a Natureza do Homem
A. Introdução: tricotomia, dicotomia e monismo.
De quantas partes
compõe-se o homem? Todos concordam que temos um corpo físico. A maioria das
pessoas (tanto cristãos quanto não cristãos) sente que também tem uma parte
imaterial — uma “alma” que sobreviverá à morte do corpo.
Mas aqui termina a
concordância. Algumas pessoas crêem que, além do “corpo” e da “alma”, temos uma
terceira parte, um “espírito” que se relaciona mais diretamente com Deus. A
concepção de que o homem é constituído de três partes (corpo, alma e espírito) chama-se tricotomia.
B. Dados bíblicos
Antes de perguntar se
as Escrituras entendem “alma” e “espírito” como partes distintas do homem,
precisamos desde já deixar claro que a ênfase bíblica está na unidade global do
homem como criatura de Deus. Quando Deus fez o homem, “lhe soprou nas narinas o
fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente” (Gn 2.7). Adão é aqui uma
pessoa unificada, com corpo e alma vivendo e agindo juntos.
1. As Escrituras usam “alma” e “espírito” indistintamente.
Quando analisamos o uso
das palavras bíblicas traduzidas como “alma” (heb. nephesh
e gr. psychÂ)e “espírito” (heb.
rõach e gr. pneuma), parece-nos
que às vezes são usadas indistintamente. Por exemplo, em João 12.27, diz Jesus:
“Agora, está angustiada a minha alma”, enquanto num contexto muito parecido, no
capítulo seguinte, João diz que Jesus “angustiou-se [...] em espírito” (Jo
13.21). Do mesmo modo, lemos as palavras de Maria em Lucas 1.46-47: “A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegrou em Deus, meu
Salvador”. Esse
parece um exemplo bem evidente de paralelismo hebraico, o artifício poético em
que a mesma ideia é repetida com o uso de palavras diferentes mas sinônimas.
2. Na morte, as Escrituras dizem tanto que a “alma” parte quanto que o “espírito” parte.
Quando
da morte de Raquel, diz a Bíblia: “Ao sair-lhe a alma (porque morreu)...” (Gn
35.18). Elias ora para que a “alma” da criança morta volte ao corpo (1Rs
17.21), e Isaías prediz que o Servo do Senhor derramaria “a sua alma [heb.
Nephesh} na
morte” (Is 53.12). No Novo Testamento, Deus diz ao rico insensato: “Esta noite
te pedirão a tua alma [gr. psychÂ]” (Lc 12.20). Por outro lado, às
vezes a morte é tida como o retorno do espírito a Deus. Por isso Davi ora, em
palavras mais tarde citadas por Jesus na cruz: “Nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Sl 31.5; cf. Lc 23.46). Na
morte, “o espírito volte a Deus, que
o deu” (Ec 12.7).5 No Novo Testamento, na hora da sua morte,
Jesus, “inclinando a cabeça, rendeu o espírito” (Jo 19.30) e, do mesmo modo,
Estevão orou antes de morrer: “Senhor Jesus, recebe o meu espírito!” (At 7.59).
3. O homem é tido tanto como “corpo e alma” quanto como “corpo e espírito”.
Jesus
nos exorta a não temer aqueles que “matam o corpo e não podem matar a alma”,
mas sim “aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo”
(Mt 10.28). Aqui a palavra “alma” claramente se refere à parte da pessoa que
persiste após a morte. Não pode significar “pessoa” ou “vida”, pois não faria
sentido falar daqueles que “matam o corpo e não podem matar a pessoa”, ou que
“matam o corpo e não podem matar a vida”, a menos que haja algum aspecto da
pessoa que continue vivo depois da morte do corpo.
4. A “alma” pode pecar, ou o “espírito” pode pecar.
Aqueles
que defendem a tricotomia geralmente concordam que a “alma” pode pecar, pois
crêem que a alma inclui o intelecto, as emoções e a vontade. (Vemos que nossa
alma pode pecar em versículos como 1Pe 1.22; Ap 18.14.)
O
tricotomista, porém, geralmente considera que o “espírito” é mais puro do que a
alma e, quando renovado, livre do pecado e sensível ao chamado do Espírito
Santo. Essa concepção (que às vezes se insinua na pregação e nos escritos
cristãos populares) não encontra realmente apoio no texto bíblico. Quando Paulo
encoraja os coríntios a se purificar “de toda impureza, tanto da carne como do espírito” (2Co 7.1), ele sugere
nitidamente que pode haver impureza (ou pecado) no espírito. Do mesmo modo,
fala da mulher solteira que se preocupa em ser santa “assim no corpo como no espírito” (1Co 7.34).
5. Tudo o que se diz que a alma faz, diz-se que o espírito também faz; e tudo o que se diz que o espírito faz, diz-se que a alma também faz.
Os
defensores da tricotomia enfrentam um problema difícil na definição clara e
exata da diferença entre alma e espírito (segundo o seu ponto de vista). Se as
Escrituras dessem claro apoio à idéia de que o espírito é a parte de nós que
diretamente se relaciona com Deus em adoração e oração, enquanto a alma abarca
o intelecto (pensamentos), as emoções (sentimentos) e a vontade (decisões),
então os tricotomistas teriam em mãos um forte argumento. [Todavia, a Bíblia
parece não dar apoio a tal distinção]. Pensamento de Wayne Grudem.
C. Argumentos em favor da tricotomia.
Os que adotam a posição
tricotomista buscam apoio em várias passagens das Escrituras. Relacionamos
abaixo as mais comumente usadas.
1. 1Tessalonicenses 5.23.
“O mesmo Deus da paz
vos santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados
íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Ts 5.23).
Esse versículo porventura não fala claramente que o homem tem três partes?
2. Hebreus 4.12.
“A palavra de Deus é
viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra
até ao ponto de dividir alma e espírito,
juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e propósitos do
coração” (Hb 4.12). Se a espada das Escrituras divide a alma e o espírito,
esses não seriam então elementos distintos do homem?
3. 1Coríntios 2.14-3.4.
Essa passagem trata de
diferentes tipos de pessoas, daqueles que são “carnais” (gr. sarkinos, 1Co 3.1); do que é “não espiritual”
(gr. psychikos, lit. “almal”, 1Co
2.14); e daquele que é “espiritual” (gr. pneumatikos,
1Co 2.15). Acaso essas categorias não sugerem tipos diferentes de pessoas — os
não cristãos “carnais”, os cristãos “naturais” que seguem os desejos da alma e os
cristãos mais maduros que seguem os desejos do espírito? Será que isso não
sugere que alma e espírito são elementos distintos da nossa natureza?
4. 1Coríntios 14.14.
Quando Paulo diz: “Se
eu orar em outra língua, o meu espírito ora de fato, mas a minha mente fica
infrutífera” (1Co 14.14), não sugere ele que a mente faz algo diferente do
espírito, e não sustentaria isso o argumento tricotomista de que a mente e o
pensamento devem ser atribuídos à alma, não ao espírito?
5. O argumento da experiência pessoal.
Muitos tricotomistas
dizem que têm uma percepção espiritual, uma consciência espiritual da presença
de Deus, que os afeta de um modo que eles sabem ser diferente do pensamento
comum e também das emoções.
6. É nosso espírito que nos faz diferentes dos animais.
Alguns tricotomistas argumentam que homens e
animais têm alma, mas sustentam que é a presença do espírito que nos faz
diferentes dos animais.
7. O espírito é aquilo que recebe vida na regeneração.
Os tricotomistas também
afirmam que, quando nos tornamos cristãos, nosso espírito recebe vida: “Se,
porém, Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado,
mas o espírito é vida, por causa da justiça” (Rm 8.10).
D. Respostas aos argumentos em favor da tricotomia
1. 1Tessalonicenses 5.23.
Em 1Tessalonicenses
5.23, Paulo não diz que a alma e o espírito são entidades distintas, mas
simplesmente que, seja qual for o nome que se dê à nossa parte imaterial, ele
quer que Deus continue a nos santificar em tudo até o dia de Cristo.
2. Hebreus 4.12.
Esse versículo, que
fala que a Palavra de Deus “penetra até ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas”, deve ser compreendido
como 1Tessalonicenses 5.23. O autor não diz que a Palavra de Deus pode dividir
“a alma do espírito”, mas lança mão
de vários termos (alma, espírito, juntas, medulas, pensamentos e propósitos do
coração) que falam dos profundos elementos íntimos do nosso ser que não se
ocultam ao poder penetrante da Palavra de Deus.
3. 1Coríntios 2.14-3.4.
Paulo
certamente distingue a pessoa “natural” (gr. psychikos, lit. “almal”) da “espiritual” (gr. pneumatikos, “espiritual”) em 1Coríntios 2.14-3.4. Mas nesse
contexto, “espiritual” parece significar “influenciado pelo Espírito Santo”,
pois toda a passagem fala da obra do Espírito Santo de revelação da verdade aos
crentes. Nesse contexto, “espiritual” pode praticamente ser traduzido como
“Espiritual”.
4. 1Coríntios 14.14.
Quando
Paulo diz: “Meu espírito ora de fato,
mas a minha mente fica infrutífera”, quer dizer que não compreende aquilo que
está orando. Sugere sem dúvida que há um elemento não físico no seu ser, um
“espírito” dentro dele que pode orar a Deus. Mas nada nesse versículo sugere
que ele considere o seu espírito como algo distinto da sua alma.
5. O argumento da experiência pessoal.
Os
cristãos têm uma “percepção espiritual”, uma consciência íntima da presença de
Deus vivenciada na adoração e na oração. Nesse profundo nível íntimo podemos
também às vezes nos sentir espiritualmente angustiados, ou deprimidos, ou quem
sabe ter a sensação da presença de forças demoníacas hostis. Muitas vezes essa
percepção se distingue da nossa consciência, dos processos mentais racionais.
Paulo percebe que às vezes seu espírito ora sem que sua mente compreenda (1Co
14.14).
6. O que nos faz diferentes dos animais?
É
verdade que temos capacidades espirituais que nos fazem diferentes dos animais:
somos capazes de nos relacionar com Deus por meio de adoração e oração e
gozamos de vida espiritual em comunhão com Deus, que é espírito. Mas não
devemos supor que temos um elemento distinto chamado “espírito” que nos
possibilita fazê-lo, pois com a mente podemos amar a Deus, ler e compreender as
suas palavras e crer que sua Palavra é verdadeira.
7. Será que o espírito recebe vida na regeneração?
O
espírito humano não é algo morto num descrente, mas recebe vida quando a pessoa
professa fé em Cristo, pois a Bíblia fala que os descrentes têm um espírito
evidentemente vivo, mas rebelde diante de Deus — seja Seom, rei de Hesbom (Dt
2.30: o Senhor endureceu “o seu espírito”), seja Nabucodonosor (Dn 5.20: “o seu
espírito se tornou soberbo e arrogante”), seja o povo infiel de Israel (Sl
78.8: seu “espírito não foi fiel a Deus”). Quando Paulo diz que seu “espírito é
vida, por causa da justiça” (Rm 8.10), aparentemente quer dizer “vivo para
Deus”, mas não sugere que antes nosso espírito estivesse completamente “morto”;
apenas que vivia afastado da comunhão com Deus, e nesse sentido estava morto.
8. Conclusão.
Embora
os argumentos a favor da tricotomia tenham alguma força, nenhum deles
proporciona prova concludente que supere o amplo testemunho bíblico que mostra
serem os termos alma e espírito muitas vezes intercambiáveis e
em muitos casos sinônimos. [Pensamento do teólogo Grudem]
E. As Escrituras falam realmente de uma parte imaterial do homem que pode existir sem o corpo
Vários filósofos não
cristãos têm contestado veementemente a ideia de que o homem tem alguma parte
imaterial, como a alma ou o espírito. Talvez respondendo parcialmente a essa
crítica, alguns teólogos evangélicos parecem hesitantes em afirmar a dicotomia
na existência humana. Em vez disso, afirmam repetidamente que a Bíblia
considera o homem como uma unidade — fato verdadeiro, mas que não deve ser
usado para negar que as Escrituras também consideram que a natureza unificada
do homem se compõe de dois elementos distintos.
F. De onde vem nossa alma?
Qual a origem da alma?
Duas teses são comuns na história da igreja.
O criacionismo é a concepção de que Deus cria uma nova alma para cada
pessoa e a envia ao corpo da pessoa em algum momento entre a concepção e o
nascimento. O traducionismo, por outro lado, sustenta que a
alma e o corpo da criança são herdados dos pais no momento da concepção. Ambas
as teses tiveram defensores numerosos ao longo da história da igreja, tendo
afinal prevalecido o criacionismo na Igreja Católica Romana. Lutero era a favor
do traducionismo, enquanto Calvino favorecia o criacionismo. Por outro lado,
alguns teólogos calvinistas posteriores, como Jonathan Edwards e A. H. Strong, favorecem
o traducionismo (como o faz a maioria dos luteranos hoje). O criacionismo
também tem muitos defensores evangélicos modernos.
Há
outra ideia popular, chamada preexistencialismo,
que preconiza que as almas das pessoas existem no céu muito antes dos corpos
serem concebidos no ventre das mães, e que Deus depois traz a alma à terra,
unindo-a ao corpo do bebê enquanto ele se desenvolve no útero.
Teologia
Sistemática. Wayne Grudem, Edições Vida Nova.
Fraternalmente Cristo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário